O Romantismo, el Doble e o Fantástico
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Eliane Colchete
Entre o ser e o não-ser, creio que o mais conspícuo da irredutibilidade
do que poderíamos tematizar entre um pensamento oriental não-confucionista,
mais associável ao budismo e ao taoísmo, e a tradição
greco-platônica-cristão-dogmática, é que se nesta seria inserível o sentido
(ideal/significado), naquela o inserível seria o conceito de vazio.
A descontinuidade é algo aversivo à tradição ocidental por que é sempre
redutível ao não-ser, o que é destituído de realidade ou concretude,
literalmente o que não existe, enquanto o pensamento oriental a tematiza como o
que é articulado à forma, ambos integrando a realidade fenomênica – assim, a
escola de pintura taoísta ensina a conjugar o traço ao vazio, não a reproduzir
o objeto pleno, de modo que a imagem deve fazer ressaltar essa conjugação, deve
transmitir a articulação e fazer ressaltar o vazio de que a forma surge, em vez
de resultar como representação da plenitude.
A forma, contudo, é afinal redutível ao vazio quando o pensado é a
realidade não-fenomênica. O não-ser não é o vazio, é o que podemos associar ao
fenomênico por oposição ao em si não fenomênico (real), no sentido do que é
transitório em relação ao que é permanente. Aqui subsiste uma opção no sentido
de ler o pensamento oriental como o de um tempo cíclico, pelo que o não-ser não
é o nada de ser, mas a alternâncias das formas; ou também expressando a
impermanência da forma como o aleatório do que sobrevém na duração. Assim, o
crisântemo que simboliza no oriente algo que dura muito, inversamente ao simbolismo
ocidental da rosa como exemplar do efêmero, é que se registra como o motivo da
perplexidade do poeta taoísta, o que o incomoda como um fenômeno atípico.
A alternância não é tanto cíclica, quanto devirenesca nesse sentido que
desloca o modus operandi do pensamento ocidental assim como plasmado na
socrática, segundo o que pensamos sempre atribuindo predicados a um objeto.
Essa unidade do objeto é o que a alternância dessas escolas orientais não
postula ao pensamento, os termos não sendo pares de opostos substancialmente
apreendidos, mas realidades pensáveis somente em transformação um no outro: o
frio é o que está para se tornar quente, o escuro é o que está se tornando
claro, o inverno é o que está para se tornar verão, e vice-versa, para todos os
pares que o pensamento ocidental iria supor de opostos estanques. Isso foi
ressaltado por Richard Wilhelm como até mesmo uma particularidade da língua
chinesa. Quando se pergunta algo precedendo-se o fato pelo que se pergunta com
a partícula não, a resposta é sim, se a negativa for o caso (- Ele não foi? -
Sim.).
No verso de Lao Tze, essa alternância das coisas aparece como sendo sua
natureza em vez desta ser a identidade fixa de cada coisa pensável una –
justamente é a coisa una que não é pensável. Sendo essa natureza “o tao do
céu”, ela é expressa pela metáfora do arqueiro que empurra para baixo o que
está em cima, e empurra para cima o que está em baixo, ao inverter com a flecha
a posição das duas bordas do arco. Os opostos não sendo identidades contrapostas,
há contudo algo de naturalmente recíproco na polaridade, os termos não são
sobreponíveis ao acaso, mas inerem a processos reais.
Em todo caso, esse não parece ser um pensamento “histórico” no sentido
científico-social, mas de fato ele está mais inserido no plano do que ocorre
efetivamente do que num plano de abstração do devir para depuração do ser. Isso
em termos do que é inteligível, posto que a todo-permanência não é a condição
do fenomênico ou de sua inteligibilidade,
Essa distinção do fenomênico e do não-fenomênico não se apreende
facilmente no pensamento ocidental, contudo, posto que por vezes a articulação
de vazio e forma é expressa como se ela mesma fosse real em si, não apenas
fenomênica, como na metáfora taoísta da flauta, instrumento oco que somente por
isso, se soprada, mais e mais sons (forma) produz, conforme Lao Tze. O vazio é
o lugar ativo, não passivo, da forma.
O caminho é o vazio, pois do contrário seria intransitável, mas ele é
percorrido e nesse ínterim converte-se nesse paradoxo de uma obstrução que o
percorre sem preenchê-lo. Creio que lidamos assim com um pensamento
“filosófico” mas que é sem princípios, o “princípio” sendo o vazio como a
articulação de todos os conteúdos que poderiam ser dados ao pensar. Isso
pressupõe ao filósofo que sua linguagem deve ser formada como cultivo de
paradoxos.
Mas também ser nesse sentido, sem princípios, acarreta a impossibilidade
expressa por Lao Tze, do tao ser definível, em termos de ser possível dar-lhe
um nome. Conhecer o tao, palavra chinesa que se traduz habitualmente por
caminho ou sentido da caminhada, é saber impossível predicar-lhe um ser
nomeável; “o que fala” – predica um nome assim ao tao - “não sabe”. Mas se “o
que sabe não fala”, não é por ser a doutrina esotérica no sentido da magia
ocidental onde o segredo iniciático é obrigatório, comporta punições se
revelado, e sim por que é impossível confundi-lo com uma realidade determinada
individualmente - não obstante aqui não ser o caso de pretender reduzir ao uno
a variação poética inesgotável quanto às interpretações possíveis desse verso.
Inversamente a poder ser delimitado o Real, em Chuang Tzu assistimos uma
conversa que inverte a negação platônica de haver ideia – realidade em si – nas
coisas desprezíveis como o pelo ou a lama. Ali o sábio a quem se faz essa mesma
pergunta, num crescendo dos exemplos de coisas desprezíveis até as mais
repugnantes, afirma cada vez mais entusiasmado que é nessas coisas mesmas que o
tao se encontra.
Não parece haver segredo possível quanto ao tao, e é nessa sua imediatez
que reside a ironia de ser tão revolucionário ser nele iniciado: mais
precisamente, “ter tido o caminho” ou “ouvir falar no caminho”. É por isso,
talvez, que se torna tão enigmático a ponto de perfazer um koan, o fato de ter
um sábio zen negado que o cão possua a natureza do Buda, logo depois de ter
assentido que tudo tem a natureza do buda, num meio em que o paradoxo é o
instrumento linguístico da filosofia, em vez da definição conceitual.
Se bem que no zen haja o esoterismo decorrente, não obstante, apenas do
fato de ser pessoal e inalienável a relação do discípulo ao mestre assim como a
trajetória de cada estudante, de modo que o koan tem uma resposta que o mestre
conhece e que cabe ao estudante atinar por sua conta até que o mestre lhe
conceda ter acertado, parece-me que podemos compreender o enigma. Ele decorre
da individualidade com que o cão foi referenciado na capciosa pergunta do
antagonista do sábio: “Você disse que tudo tem a natureza do buda. Tem o cão a
natureza do buda?”, ao que a resposta foi “Mu”, que geralmente se interpreta
“Não”.
Enquanto individualidade, nada, justamente, tem a natureza do Buda, como
vemos no taoísmo em relação ao caminho que é vazio. Nada nomeável é o caminho.
"Tudo" significa aquilo que não é alguma coisa nomeável. A
individualidade é o enganoso da predicação substancial da parte em relação à
processualidade imanente da natureza que envolve tudo, mas que por isso mesmo
não pode ser pensada como alguma coisa em si acima das coisas que conhecemos.
Por exemplo, o vazio é associado à subjetividade, como o que deve ser
cultivado pelo sábio no seu interior, ou melhor, como o que é o real da
interioridade, como de tudo mais. Por outro lado, essa destituição de um
sentido autônomo do “ego” não deve resultar numa despersonalização do sábio, ou
num quietismo abstrato, mas inversamente resultar numa personalidade presente,
ativa, engajada na experiência, que é contudo expressa como irredutível ao que
se deve evitar, a saber, a individualidade, um “ponto de vista pessoal” a
propósito da realidade.
Assim também, o que vimos sobre
os opostos que são alternâncias não elide que a percepção seja extremamente
acurada quanto à singularidade dos eventos, ou para a forma na sua
complementaridade ao vazio – como no hai ku em que da quietude perfeita da
natureza o salto da rã seja captado na extrema singularidade do seu evento
contrastante com o meio, o vazio que na verdade é comunicado pela linguagem do
hai ku como o vazio da mente que percebe o quadro natural na ausência de pontos
de vista sobre o que vê, assim como o poema mesmo é essa neutralidade do que
ele proporciona à visão até que a rã salte e surpreenda a visão.
Ou no exemplo do sábio zen que após varrer criteriosamente o quintal,
sacode uma árvore para que as folhas nele tornem a se presentar – não houve uma
ação pessoal nesse fato de tudo estar limpo, a ação se desenvolve no meio que
envolve o sábio apenas como mais um elemento na sua interação contínua.
O ego vazio é então o veículo excelente da forma que a meu ver, o
pensamento oriental não abstrai no sentido do impessoal, mas inversamente capta
como autenticamente realizada, como de um sábio, se está eivada de sua
personalidade e singularidade (estilo) pensáveis em termos da sua inserção no
aqui e agora, ou seja, não decorrente da sua individualidade e sim do que os
românticos chamavam o histórico em pintura, o seu evento, a circunstância do
mundo que o trouxe a esse presente em que se desenrola a cena na qual ele “é”,
ou seja, ele atua o wu-wei (não-ação).
Quanto ao estilo ou o singular, o apreendemos na anedota em que dois
sábios estão à beira de um tanque observando os peixes e um deles comenta a
propósito da alegria dos animais na água, ao que o outro retruca: “não és
peixe, como poderias saber o que eles sentem”? E o outro responde: “Não és eu,
como sabes o que eu não sei”?
Assim também a resposta de Chuant-tzu ao lógico que se ocupava do
problema da atribuição: “um homem destituído dos atributos humanos é ainda um
homem”? E Chuang-Tu afirma veementemente que sim, depois defende
pormenorizadamente sua concepção por meio de uma enunciação eivada de
paradoxos. Esse lógico é personagem histórico, no cenário do século IV ou III
ac., mas costumeiramente ridicularizado
no Chuang-tzu – pois sem compreender a complexidade, ele se ocupa do “branco” e
do “duro” (atributos e sua ligação com o sujeito da proposição).
Como se prtaica na na relatividade, a impossibilidade dos corpos
ocuparem o mesmo espaço implica na impossibilidade do conceito de
simultaneidade. Se o ego não está obstruído por sua identificação como algo que
deve ser substancialmente referido como ele Mesmo, devido à ignorância do
caráter fluente da natureza, o que é atuado ou realizado, a performance, é o
absoluto da sua inserção nessa fluência.
O ego a depurar é correlato do engano da forma como um em si, do mundo
todo contínuo de coisas individuadas, como se o sujeito pudesse ser entendido
ele também como essa plenitude cuja imagem como aquilo a ser ultrapassado, é
fornecida pela metáfora da recusa da ação. Esta não pode ser entendida como a
produção de algo, inversamente, o obstáculo à produção de alto autêntico no
sentido da personalidade do sábio e do que é esteticamente valorizado. O que é
preciso enfatizar aqui é que isso implica o inconsciente de um modo que no
Ocidente só veio a se enunciar com o Romantismo. A metafísica, desde Platão,
pratica a impossibilidade dessa apreensão porque aquilo que é permanente em
oposição ao transitório, na verdade é apenas o transitório fixado.
As ideias são ideias daquilo que vemos no transitório, como a ideia da
rosa seria a rosa eterna. Assim pode-se realmente afirmar que Platão decalca o
transcendental do empírico. Ao mesmo tempo que nega a aparência, toda a imagem
que faz do eterno lhe provém dessa mesma aparência. Já no taoísmo, aquilo que
vemos no transitório não corresponde à realidade do permanente. Nós vemos a
rosa porque é isso que ressalta no jogo das demais coisas transitórias,
incluindo a relatividade da nossa observação.
O permanente é o que está além dos elementos dos lances do jogo, é o
jogo mesmo, o que vimos como o “tudo”, a natureza do buda ou o caminho, que não
tem comensurabilidade com nada no visível, pois não tem ponto de fixidez, se
está além de toda perspectiva individual ou relativa a uma posição pensável.
Creio que isso é bem parecido com a relatividade, contra o parecer do
bergsonismo. Todo tempo apreensível ser relativo a uma posição pensável não
implica um tempo absoluto ele mesmo pensável, inversamente implica o
impensável. Uma realidade em si que não está limitado por nenhuma perspectiva
pensável.
Quando nos instalamos na concepção de que essa realidade é o que subjaz
a qualquer perspectiva pensável como na objeção bergsoniana, não estamos
referenciando o mesmo nível do real, posto que já situamos no pensar alguma
perspectiva. Este nível não sobrepõe de fato, nem de direito, aquele.
Assim, como assinalamos, o pensamento taoísta não admite qualquer
princípio ontológico, somente o vazio como o impensável, impredicável,
indizível, assinala o limite depois do qual se pode começar a postular algo da
realidade visível. Por outro lado, o inconsciente não é um esquema do visível.
Entre o transitório visível e o permanente se instaura o limite do finito ao
infinito. Pensamos aquilo que está no finito,mas o que subjaz como o infinito
já não pode fornecer qualquer esquema, plausibilidade ou fundamento do real. O
sábio que sonha ser uma borboleta não tem como garantir que é ele que sonha, ou é a borboleta que o
sonha.
Mas isso, como vimos insistindo, não significa uma doutrina de
quietismo, bem inversamente. Onão-princípio ou limite do finito e inefável é
aplicável utilmente em vários domínios, como já exemplificamos com a estética e
com a questão da subjetividade. Podemos agora ver a aplicação do não-princípio
(vazio) na teoria política.
O mal não é ser governante, mas confundir o governo, que é o vazio em
que aquilo que transita é a sociedade com suas necessidades a serem
satisfeitas, logo tornando-se a necessidade em plenitude para depois tornar a
ser preciso preenchê-la, e assim ao infinito encadeando-se a necessidade e a
providência, com o poder que é algo suposto pleno como uma realidade em si
mesma atribuível a alguém como ao governante. Nesse caso as instituições seriam
não só artificiais, mas inúteis por que só existiriam como meios de honrar
aquilo que por si só não existe, um poder governante que não se concebe em
função do governado, assim como aquele que se pensa como substância toma tudo
como se devesse seu sentido ao modo como se presta ou não à sua vontade, o que
precipita a decepção contínua perante um mundo neutro e opaco à sua
individualidade.
Aqui não creio haver ambiguidade no fato de que o sábio taoísta provê
uma teoria do governo, mas ele recusa ostensivamente governar ou ser funcionário
da corte. O sábio é um estatuto próprio assim como se supõe haver o do
governante. Mas não há dúvida de que podemos ler nessa recusa um desdobramento
da teoria política como crítica das instituições reais – a corte é um lugar do
Poder, historicamente, não obstante a essência do governo não o ser. Intervem
também aqui provavelmente a circunstância extremamente adversa dos conflitos
sociais da China antiga, ambiente de constantes guerras entre impérios e
dinastias farisaicas, cuja concepção de poder era a expressão da máxima
crueldade contra os vencidos ou potencialmente rebeldes.
Os personagens da literatura taoísta, sábios ou ouvintes, são geralmente
pessoas simples, das classes populares, preferencialmente muito feias -“ de
estarrecer”, conforme Chuang Tzu a propósito de um sábio especialmente estimado
- ou a mulher idosa, ou até mesmo
marginais que sofreram punição como o homem a quem havia a lei imperial
amputado um pé pelo delito cometido, e que ouve o sábio.
Nessa anedota de Chuang-tuzu, Confúcio, que seria o sábio, é
ridicularizado porque perante esse homem procedeu comentando ele já havia
perdido a virtude, ainda que lhe restasse a possibilidade de consertar-se ou
regenerar-se, quando na perspectiva taoísta a condição exterior é o que menos
importa à atitude presente do ouvinte em relação à doutrina. Conforme a
resposta desse homem, a qual desconcerta Confucio, podemos depreender que ele
expressou ter vindo ouvir o sábio como alguém, qualquer pessoa, que desejava se
iniciar na virtude, ou compreendê-la, não como alguém que cometeu um delito,
até pelo que ele já havia pago – não há lugar para o arrependimento quando se
trata de compreender a doutrina, quanto a isso trata-se sempre da mesma
possibilidade em todos nós. O homem anuncia então que não ouvirá Confúcio, e se
dispõe a ir-se embora. Confucio se desculpa com o homem, mas ele não permanece.
O comentário do texto afirma nitidamente que, sendo o que tenha sido,
tanto faltoso como grande dignatário, a doutrina o transforma e se isso ocorre
ele percebe que é participante da virtude celeste; mas um homem cultivado,
socialmente um sucesso, que julga ser assim por sua natureza individual, é o
objeto da gargalhada do sábio,, verdaderiamente um objeto de zombaria, também numa anedota do Chuang-Tzu.
Ora, sabendo como era o estado de coisas político, não temos como saber
se a pena aplicada significa realmente que o homem a quem a lei imperial
decepara o pé era desonesto. Provavelmente, não. Os poderosos são impunes, as
pessoas simples são objeto da chacota do sistema como alvo da exibição de poder
dos farisaicos ocupantes das cortes.
Que a doutrina taoista ensine os pobres a porem-se de fora do caminho
das intrigas sociais, eis o que tem uma relevância num meio social como aquele,
a meu ver. O antagonismo de confucionismo e taoísmo teria, conforme essa
opinião, um sentido obviamente filosófico de amplo alcance, mas seria assim
também expressão de uma ambientação social bem localizável historicamente.
Visto assim, o confucionismo se torna ainda mais criticável, porque no tocante
às pessoas pobres, ele é um caminho inteiramente falso, uma doutrina hipócrita.
Essas pessoas não tem realmente o mesmo meio social que aquelas destinadas a se
tornarem veículos do poder imperial. Para elas, um conteúdo verdadeiro a
propósito da sociedade teria que abranger a situação de limitação de
expectativas e conflito potencial a que estão permanentemente expostas.
Tanto assim que quando o império unificado se firmou na China, após o
quadro das constantes guerras pelo poder entre os Estados, a destinação dos
letrados foi reduzida a integrar a classe dos “estudiosos-cavalheiros”
totalmente posta a serviço da propaganda do império unificado, subentendendo-se
ser a proveniência deles da nobreza.
Entre os estudiosos-cavalheiros dessa época imperial, era obrigatório o confucionismo, junto com a
adoção das lições pre-adaptadas pelo
império, severamente censurado todo outro conteúdo de cultura no território ou
até mesmo qualquer interpretação das escrituras confucionistas destoante da
aceita por aquela cartilha pré-adaptada, oficialmente utilizada. O que
circulava além disso, não podia aparecer como “cultura”, ou seria objeto da
punição ou eliminação por parte do império. O que implicou não apenas a
marginalização do táoísmo, mas a censura de um intertexto cultural muito
antigo, posto que antes da unificação imperial, e em eras bem precedentes à
emergência das escolas filosóficas do século IV, o conteúdo histórico relativo
aos Estados não grafava apenas, como se diz erroneamente, registros
burocráticos, mas invariavelmente continha informação sobre a mentalidade do
governante, o rei, e alguns destes foram considerados sábios e iniciadores,
como o atribuído autor do I Ching.
Há aqui, segundo creio, também uma relação com o fato de que num
ambiente assim, ressalta mais do que o
esperado, o fato do lote dos méritos e defeitos não ser realmente imputável às
pessoas, mas quase que automaticamente derivável das condições sociais e do nascimento.
Isso então obtem um relevo quanto às
consequências, coerente com a teoria social de conflito adequada às
classes em que o taoísmo viceja. Uma pessoa culta nasce num meio esclarecido,
assim, se ela se transformar num bom funcionário em vez de um farisaico
exibicionista do poder, ela não tem verdadeiramente mérito, é o que se
esperaria dela por não ser um bárbaro no sentido de ter crescido num ambiente
exposto a valores brutais pelos motivos compreensíveis da necessidade e
ausência de instrução, ainda que o desvio do exibicionista farisaico seja o
mais comum, também por influência do meio, desta vez por sua corrupção
generalizada.
Em todo caso, a transformação por ouvir a doutrina não é da pessoa, da
sua virtude que o taoísmo não diferencia muito da imagem do vigor do corpo, não
reduzindo porém a virtude à força física, bem inversamente, mas como o lote do
destino, o que recebemos com o nascimento, tanto a condições sociais quanto os
dotes do intelecto e do corpo; e sim da sua compreensão dessa natureza, o que
automaticamente implica a felicidade qualquer que sejam as condições do nosso
lote pessoal, posto que o iniciado não mais se coloca como algo à parte do
mundo, ainda que evite o que não lhe convém, mas integra a realidade
permanente, justamente inalienável. O encadeamento das ações não é
individualmente atribuível – fazer o bem ou o mal não é sempre evitável pelo
indivíduo, por estar ele num encadeamento contínuo que lhe ultrapassa, seja
pela força da natureza, sendo fraco ou forte fisicamente; ou da realidade
política em que está envolvido como pobre ou rico, como numa posição de receber
educação ou não, ser bem ou mal influenciada, etc.
O que a sabedoria haurida na doutrina permite é o envolvimento mínimo
dessas coerções existenciais, posto que o sujeito na fluência a nada se agarra,
ou seja, por nada é induzido ao engano da individualidade causativa. Ele nada
faz, mas não deixa nada por ser feito. Aparentemente podemos deduzir que
abstendo-se do que não faz parte realmente do nosso caminho, a doutrina conduz
à evitação do envolvimento com a corrupção, e do mesmo modo, com a arrogância,
ostentação ou apego ao domínio. Nesse paradoxo da não-ação, presume-se que
somente aquilo de que não há sentido em se esquivar, posto que inere ao nosso
estar em vez de ser algo evitável, é aquilo com que nos é benéfico permanecer
envolvido ativamente. Nada na ação assim neutralizada no aspecto
individualizante, traz louvor ou desprestígio ao sujeito.
Tudo lhe é conatural, mas relativamente ao caminho algo tem relevância,
e geralmente as ocupações dos que conhecem o caminho são transformadas em arte,
como no exemplo do exímio cozinheiro. Aqui não se trata apenas de fazer algo
bem ou mal, mas da aplicação do princípio do vazio, articulação da ocupação com
os ensinamentos acerca da postura, respiração e estado interior correspondente
ao que se faz, de modo que o resultado , sempre excelente, surge no entanto
como que independente do esforço pessoal. O mesmo comentário do cozinheiro, no
Chuang-Tzu, ressoa com o do marceneiro, e especialmente no zen budismo essa
ligação da doutrina com a prática é muito importante, originando os ensinos de
artes específicas - como na arte do arqueiro zen, em que iniciou-se o ocidental
Eugen Herrigel, a quem muito espantava o ensino porque a posição que se pratica
é avessa ao senso comum, como também há a arte da cerimônia do chá, dos
arranjos florais, da pintura, etc.. A ênfase exclusiva na meditação também é um
dos desdobramentos do zen.
Entre China e Japão, de fato,
alguns elementos são peculiares, por exemplo, a ênfase japonesa nos aspectos
rituais, tendo havido a progressão a um caráter oficial da doutrina, e na
valorização da maturidade que se reveste de um aspecto estético e poético
específico. Taoísmo e zen budismo não são de fato a mesma prática, e mesmo
internamente eles se diferenciam em escolas no decorrer de sua longa história,
mas esses traços do não-princípio, do uso de paradoxos, e de uma doutrina que
só se desdobra do desfazimento de todo situamento de princípio, permanece em
comum a ambos.
Paralelamente ao taoismo e ao
confucionismo, a filosofia chinesa é bastante variada, sendo um processo que
pode ser estudado com a coerência que atribuímos normalmente à filosofia grega,
por ter uma abrangência semelhante de pensamento especulativo. Aqui é interessante
registrar que uma das escolas efetivamente tematizou a duplicidade,
O pensamento budista chinês da escola do lotus (fa hua) – que se
considera bem original, não obstante ser inspirada no sadharma pundarika sutra
(sutra do lotus) interpretado por Tche kiai - já apresenta algo menos
transitivo em termos de duplicidade do que o dualismo de alma e corpo
habitualmente envolvido nos sistemas antigos. Na escola dolotus, o Espírito
(“Sin”), é conceituado Tchen ju (“Real assim”) que se manifesta na duplicidade
do puro e do impuro. Essa manifestação é real, mas o tchen ju nele mesmo é o
espírito universal de que dependem todos os “dharmas”, a existência das coisas
singulares, que no entanto em si são aparência, só o tchen ju sendo real.
Ora, sendo decorrência do espírito manifesto, todos os seres ou dharmas
tem natureza dupla, pura e impura, sejam os seres comuns ou os Budas. O impuro
encadeia no karma, o puro conserva a conexão com o espírito, pelo que
entende-se que os comuns tenderam à sua natureza impura, enquanto os budas
inversamente, produzem atos puros. Mas sempre os seres comuns podem
converter-se a limitar seus atos aos puros, enquanto os budas podem deixar-se
tentar pelos impuros e encadear-se novamente no karma. É a instrução espiritual
que permite compreender a duplicidade e estabelecer-se no que é puro, mas como
estamos notando, se bem que real, ela tende a um mais real do imanifesto que
não é duplo, e sim o espiritual em si.
Essa alternância parece instaurar um pensamento não maniqueísta, onde a
duplicidade do bem e do mal já está interpondo uma contraposição explícita, de
feitio irredutível ao que estamos observando típica de escolas de pensamento
oriental. Assim, o maniqueísmo encerra uma
orientação mais dualista que duplicada, pois acarreta a consequência da
confrontação direta dos dois aspectos opostos, subentendendo a redução ao uno.
Na região da antiga centro-américa o maniqueísmo era extenso a todos os poderes
da natureza, como entre a noite e o dia. Mas não está clara a relação
inteligível que era assim expressa. Não parece haver o sentido de uma
personificação a encarregar-se da redução, ao menos num plano ético, ao uno.
Alguma ressonância do
maniqueísmo por vezes se insinua como interpretação dos duplos, como vimos em
Rosset, como se um fosse bom e outro mal, mas de fato nessa literatura as
amostras são muito variadas, interditando que se possa reduzir a um esquema
único. Em Hoffman há até mesmo menção ao
duplo deliberadamente produzido pelo feiticeiro que assim se beneficia
contra o jovem Nathanael. Pelo modo como essa informação é manejada na trama,
deduz-se que a crença no duplo produzido
por meios esotéricos era corrente, de modo que as amostras distópicas do duplo
podem ser vistas como derivação
imprevista, fortuita ou devido ao conflito desencadeado pelo comportamento do
personagem, de algo tido por natural pela crença comum.
Nesse conto hoffmaniano, o duplo é apens mencionado como uma hipótese,
no entanto, enigmática à recepção, porque trata-se da hipótese da identidade do
antagonista do jovem ser o mesmo da sua infância. O que a noiva racionalista do
rapaz trata de negar como hipótese válida não é portanto que o feitceiro da
infância do rapaz tenha um duplo, mas de que o homem que o obseda atualmente
seja esse duplo enquanto o mesmo feiticeiro da infância do rapaz, para ela
sendo apenas outra pessoa sem vínculo com o antagonista da infância, vinculo
esse devido apenas à imaginação exacerbada ou fraqueza psicológica do rapaz que
ela o admoesta a abandonar. Inversamente, toda a trama parece conspirar para
que a recepção apreenda o antagonista como duplo/mesmo da infância, no entanto
isso permanece não-decidível.
Há aqui um apelo mais nítido da literatura do duplo romântica ao que
será a literatura do tipo, realista. Se era a mesma pessoa ou não, em todo caso
sem dúvida é a mesma feitiçaria. A qual
implica, nesse conto, a
inexorável desdefinição/duplicação da identidade não só funcionalmente, do
feiticeiro, mas disfuncionalmente daquele a quem ele projeta seus prodígios: o
pai do rapaz, na infância deste; a fabricação de um autômato que o rapaz
confunde com uma moça, na idade adulta; a fabricação de lentes que distorcem a
visão.