sábado, 31 de dezembro de 2016

Fidelidade ao que se é.

No pequeno ensaio intitulado Estética em tranvía atrás citado, Ortega y Gasset apresenta a vida de cada pessoa como sendo a realização do que ela é. Este projeto é condição da vida de cada um e o revelador de sua realidade. Cada homem olha o mundo de um modo, o que faz da circunstância algo singular porque o entorno ao eu é afetado pelo modo como ele é percebido. Assim, é importante que cada indivíduo seja, antes de tudo, fiel a si mesmo, à sua maneira de ver o mundo, teria dito logo no início em Verdad y perspectiva, igualmente apresentado no volume primeiro de El espectador, pois cada pessoa é única e só ela é capaz de dizer determinados aspectos da circunstância. Diz o filósofo: “Aspiro contagiar as demais pessoas para que sejam fiéis cada qual à sua perspectiva” (p. 20).

A forma como cada pessoa olha o mundo a distinguirá das demais, afirma Ortega y Gasset em Dios a la vista (1926). Por exemplo, a atitude agnóstica, de tanta importância na tradição filosófica, é uma forma de olhar o mundo. Ele afirma: “O homem agnóstico é um órgão de percepção acomodado exclusivamente ao imediato” (p. 495). O gnóstico, ao contrário, olha o imediato com desconfiança e busca explicações além de sua experiência próxima. Gnóstico significa para o filósofo não só o homem religioso e nem apenas o que vê disputas entre bem e mal na história, mas aquele a que repugna o imediato. Neste sentido, o movimento gnóstico remonta a Platão que já não se encanta com o imediato diz o filósofo: “Já em Platão se nota o início de tal repugnância, que vai subindo como uma maré, incontrolável” (idem, p. 495).

A fidelidade à própria perspectiva não se restringe a um certo modo de pensar o mundo, mas também ao respeito aos sentimentos vividos, esclarece o filósofo em Apatia artística (1921):

Eu creio que a maior parte dos homens vivem uma vida interior, de certa maneira apócrifa. Suas opiniões não são, na verdade, suas opiniões, são estados de convicção que recebem de fora por contágio e o que acreditam sentir não o sentem realmente, senão que, melhor, deixam repercutir em seu interior emoções alheias (p. 335).

O sentido íntimo de fidelidade a um modo de ser é um compromisso do homem com ele mesmo, uma vida autêntica depende da fidelidade a si. É claro que esta fidelidade tem também um aspecto social ou coletivo, pois para respeitar a própria perspectiva há aspectos culturais. Por exemplo, enquanto o espanhol parece ter certa vergonha quando se percebe se deliciando com alguma coisa, o francês, ao contrário, entende que, diz em Tema de viaje: “Viver é gozar o viver. Porém advirta-se que gozar não significa uma atitude meramente passiva, gozo de uma atividade enérgica, mercê da qual nos voltamos para o espontâneo” (p. 374). Portanto, a fidelidade a um modo de ser inclui aspectos diversos da circunstância pessoal, afetiva, intelectual e grupal. O que o homem aprende no grupo tem raízes profundas em suas virtudes e impulsos, o que significa que a fidelidade ao cultural é também a fidelidade a seus impulsos profundos transformados pela vida coletiva. Em outras palavras a exigências mais íntimas de cada um encontram no espaço social um lugar para se realizar. A fidelidade à perspectiva é frequentemente o respeito a uma força íntima que se expressa numa profissão, diz em Intimidades (1929): “às vezes a vocação do indivíduo coincide com as formas de vida, que se desenvolve segundo ofícios ou profissões. Há indivíduos que, com efeito, são vitalmente pintores, políticos, negociantes ou religiosos” (p. 656). No entanto, a expressão vital de uma perspectiva pode se realizar em diversas profissões, como também se pode exercer uma profissão sem qualquer fidelidade à própria vocação. Em resumo, o desejo humano é a fidelidade à perspectiva, idéias, sentimentos e vocação. A fidelidade a esta perspectiva é também o respeito ao que há de mais singular no homem, sua limitação ou finitude. A fidelidade ao humano inclui o respeito à morte, não à morte química que é infra-humana ou à imortalidade que é sobre-humana, mas ao respeito do homem pelo fim que está obrigado a viver. Diz em Notas del vago estio (1925): “A humanização da morte só pode consistir em usar dela com liberdade, com generosidade e com graça. Sejamos poetas da existência que sabem ajustar sua vida a rima exata em uma morte esperada” (p. 433).

Finalmente a fidelidade a si tem implicações no fato de sermos homem e mulher. Na mulher, o que mais encanta não é a elegância das veste e das atitudes, mas a riqueza do íntimo construído em horas de solidão ou mergulho em si, esclarece o pensador: “A mulher admirável que agora nos preocupa revela em todo seu ser um tesouro composto das horas de solidão”
(idem, p. 450).

José Mauricio de Carvalho
Universidade Federal de São João del-Rei

sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Vórtice negentrópico automonitorador espontâneo . 54

Um pouco mais de vento e os mercados chineses voltaram a cair ontem , em meio à negociações fracas e com a confiança afetada pelas últimas medidas para colocar os investimentos agressivos das seguradoras em ações sob supervisão mais rigorosa . .. ''Estou vivo '' (pensei logo) ''Mais vivo do que os outros, e é possível que ao oferecer cerveja à Rose eu tenha transformado -a na minha única ligação contingente no mundo, ou na ligação livre que iria emancipar as ligações inversas, as das relações consanguíneas ou familiares,  e aquelas das relações amorosas ou conjugais ''. A própria lanchonete nos oferecera , como cortesia, não um, mas dois fosfatos de lima depois de demonstrarmos algum conhecimento do índice CSI 300 , que reunia as maiores companhias listadas em Xangai e Shenzhen. O índice recuara  0 ,43% na quarta-feira e a confiança dos investidores restou abalada pela informação de que o Vice-Presidente da Comissão Reguladora de Seguros da China havia dito que as seguradoras não eram plataformas para enriquecer os especuladores. ----- Os satãs da América do Norte (eu dizia aos balconistas afoitos) com seus estômagos de ferro corroído , estão tentando envenenar o mundo inteiro com sua culinária especulativa : Cheeseburguers de auto-valorização de capital e Baconburguers e Pepperburguers com ovos fritos e batata palito amparados em diferentes escalas pelas relações de poder , pelas construções institucionais e pelas formas jurídicas : ''Em todas aquelas constituições de estrelados, mexidos e virados ; anéis de cebola disciplinares que unificam o poder econômico e o poder social deixando um pastrami quente de governança dos homens na grelha infecta do dínamo concorrencial democrático. Omeletes e pizzas chegando congelados em caixas em apoio à redução dos custos trabalhistas , necessitando apenas serem requentados pelos estímulos ao empreendedorismo individual . O grande adversário a ser batido sendo as formas de solidariedade classista que ainda resistem, como um sunday derretido no prato de restos a pagar '' . Enfim : Super-sanduíches eram canibalizados por todos os fregueses à minha volta , que ainda acreditavam  ,primitivamente, QUE SOMOS O QUE COMEMOS .Os pedidos eram atendidos psicoticamente num mar agitado de música eletrônica e barulho de trânsito. Rose (pelo menos) aguardava calmamente seu sanduíche de begônias, e o fazia com elegância ,  na condição de Musa das forças políticas modernizadoras do Estado,cantarolando inveterada durante todo o verão, embora decepcionantemente sem o espírito de cooperação em outros tantos sentidos, que talvez fossem úteis aqui ou ali . Mas minhas tentativas de seduzí-la frequentemente caíam em terreno estéril ----- sua firme determinação existencial era mesmo alcançar, como yogini , não o Nirvana e a liberação do Karma ,  mas a ascensão social e a visibilidade midiática. No momento , eu morava mais ou menos modestamente numa caixa de alumínio na orla de Bay Citty , equipada com um privada química, uma pia de cozinha dobrável e um interceptador de ondas psico-magnéticas. Mas pretendia vender tudo isso o quanto antes e me mudar para uma casa de praia de dois quartos e meio, com uma criança e meia no colo . O passo seguinte na minha estratégia social arrivista para conquistar o coração de Rose  era uma imitação em estilo Tudor com vigas falsas dando para o sexto green do campo de golf do Clube dos Voluptuários Comedores de Banco. Isso era para seduzí-la de vez , eu pensava. Na condição de Dhyani Budha, era-me perfeitamente possível subir as contorções através das tubulações lubrificadas da refinaria de fatos. Com tal progresso a meios passos, ajudado pelo poder misterioso da mente , eu libertaria Rose das ilusões do Ego  e minhas enviesadas , tímidas tentativas de seduzí-la, ganhariam uma força extra descomunal. Aquilo era como convencer uma locomotiva em alta velocidade a deixar os trilhos. Mas caso não desse certo, eu apelaria imediatamente para o mito da dupla vencedora. Logo depois, para a lenda urbana da Amizade Conquistadora e, finalmente ,  no outro extremo do espectro social , recorreria ao sorriso obrigatório da caixa do supermercado.

K.M.

Continuo logo mais.

Circunstância em “El espectador”, o entorno ao eu

José Mauricio de Carvalho
Universidade Federal de São João del-Rei

Partimos do seguinte: circunstância é um conceito fundamental para se entender o raciovitalismo orteguiano. Não é um exagero o que escreveu uma estudiosa de Ortega y Gasset (AMOEDO, 2002; p. 224/5): “circunstância – com tudo que ela implica – representa a intuição fundamental de Ortega, o que determina a diferença específica de seu filosofar e a raiz que explica todas as suas atividades”.

Nos diversos ensaios de El espectador o problema do que envolve o eu aparece e é investigado. Em Verdad y Perspectiva (1916), o filósofo associa ser espectador com buscar a verdade. Desde a Antiga Grécia os filósofos aceitaram o desafio de buscar a verdade e este é um problema para a multidão de pensadores que se inserem na tradição filosófica.

Para o filósofo é importante mirar o mundo “com olhar suplicante de náufrago, a quem importa a verdade, a pura verdade, o que as coisas são por si mesmas” (ORTEGA Y GASSET, 1998; p. 16). Trata-se de atitude fundamentalmente filosófica ou teórica que se opõe à atitude prática, por exemplo, dos políticos. Ortega y Gasset a percebe em Platão (438-348 a.C.) que, no livro da República, diz o que são os homens que se dedicam a contemplar a verdade.

Afirma: “são os especulativos, e à frente deles os filósofos, os teorizadores” (idem, p. 17). Ortega y Gasset não fala, contudo, de uma contemplação de idéias que transcendem a consciência como fazia Platão, mas da descrição da vida em todas as suas manifestações. Eis como o faz: “olha, porém o que vê é a vida que flui ante ele” (idem, p. 18). O Espectador é o homem que contempla o mundo com o propósito de entendê-lo e o olha buscando compreender o que ele é fundamentalmente? Em nosso tempo o tema que pede esclarecimento é a vida. E o espectador a contempla como uma subjetividade singular, um eu concreto e não como uma razão abstrata ou uma consciência universal. Esta conclusão tem implicações importantes. Cada um é um eu particular, a verdade se apresenta para ele de modo singular como esclarece Ortega y Gasset: “cada homem tem uma missão de verdade. Donde está minha pupila não está outra, o que da realidade vê minha pupila não o vê outra” (idem, p. 19). Portanto, a verdade se apresenta a cada um segundo uma perspectiva.

O olhar, ou melhor, os sentidos e a consciência do indivíduo se dirigem para o seu entorno imediato, não para algo distante e abstrato. Assim, é o olhar dirigido à mulher que toma um bonde onde alguém está. O que contempla o observador? A beleza dela. Seria a beleza expressão de uma forma pré-existente ou uma ideia pura de beleza, como dizia Platão, com a qual comparamos aquela mulher concreta? Não, responde o filósofo em Estética em el tranvia(1916). “não há um modelo único e geral a que imitam as coisas reais” (p. 34).

Cada mulher é única em sua beleza e, por sua vez, cada homem é capaz de vêla de um modo distinto, igualmente singular. Esta atitude de olhar e avaliar a beleza à volta, num fenômeno que Ortega y Gasset chama de cálculo da beleza feminina, é atitude fundamental de avaliação do entorno. Esta atitude não se aplica só a esta situação, mas a todas nas quais o eu é desafiado a contemplar e estimar. Ele esclarece: “o cálculo da beleza feminina uma vez realizado serve de chave para todos os demais reinos de valorização” (idem, p. 38).

O que o homem avalia? Tudo o que lhe aparece, tudo que está diante dele e lhe oferece resistência. Diz o filósofo no ensaio Tierras de Castilla (1911): “as coisas estão aí, diante de nós, oferecendo-se ou servindo-nos” (p. 43).

A mesma atitude se espera quando a pessoa está diante de ideias e não de fatos, complementa em O gênio da Guerra (1916). No caso são as ideias que estão aí diante de nós e que devem ser examinadas com objetividade, como ele diz: “não interessa desvirtuar as ideias alheias em proveito das próprias.

Ao contrário, o empenho é extrair - a maior quantidade possível de bom sentido” (p. 218). Portanto, em relação a fato ou ideia, o espectador da circunstância busca a verdade ou o bom sentido. Bom sentido é o que nasce da descrição cuidadosa do entorno, da paisagem que envolve o eu enquanto se movimenta ou das ideias que estão diante dele. A paisagem surge numa mirada singular, ela pode ser compartilhada e reconhecida pelos outros, embora seja única em sua gênese. Trata-se de atividade que exige tempo e cuidado, explica Ortega y Gasset no ensaio De Madrid e Asturia o los dos paisages (1915) que está no Espectador III: “Esse tempo e outro são insuficientes para conhecer o corpo e a alma de uma comarca, ainda que se dedicando por inteiro a seu estudo” (p. 251).

Além da perspectiva distinta, a paisagem muda também com o tempo. A descrição da paisagem vista da janela do trem tem semelhança com outras situações de nossa vida. O entorno se transforma à nossa volta, as coisas mudam, temos história. Desde a infância o que está a nossa volta se altera diz o filósofo: “No tempo que dizemos já vem, já vem, a esta paisagem, a esta amizade, a este acontecimento temos que ir preparando os lábios para dizer já se vão, já se vão” (idem, p. 247). E este contorno do eu integra a vida de todos nós, somos um eu e uma circunstância inseparáveis, e um eu histórico, envolvido numa circunstância também histórica. No ensaio Elogio del Murciélago (1921), texto de Espectador IV, Ortega y Gasset fala que a paisagem que envolve o eu funciona como pano de fundo da vida do homem e se explica junto com ela. Este cenário não se separa do eu e se torna, por tal vínculo, algo diverso do que ele é por ele mesmo. Nas palavras do filósofo: “A paisagem tem o destino de ser fundo de algo que não é ele e servir de cenário a uma cena vital” (p. 338). O entorno só faz sentido associado a um eu e este reconhecimento de que não é possível separar o homem do mundo, ou o eu da circunstância que o envolve, explicita-se ainda mais em Conversación em el Golf o la Idea del Dharma (1925), onde afirma:

“Se não existe alguém que ateste a existência das demais coisas, esta seria como nula” (p. 405). Portanto, apesar das diferenças que indicaremos adiante, o raciovitalismo incorpora o que há de essencial na fenomenologia.

O conceito de circunstância contempla o entorno que não se resume à paisagem representada pelo ambiente social ou o nós. Este ponto é marcante no raciovitalismo, o entorno ao eu inclui a intimidade representada pelos mecanismos fisiológicos da vida, das leis que regem a alma e pelas expressões do pensamento ou espírito, tudo isto histórico e escondido em cada homem. Diz o filósofo em Sobre la expresión fenômeno cósmico (1925): “A diferença de todas as demais realidades do universo, a vida é constitutiva e irremediavelmente uma realidade oculta, inespacial, um arcano, um segredo!” (p. 578).

A intimidade ou o lado de dentro que representa a parcela oculta da vida também circunscreve o eu, como também o envolve a situação exterior, a realidade social, econômica, política, temporal, em resumo cultural onde vivemos.

O lado de fora do indivíduo, aquilo que se manifesta para os outros, é expressão do interior que se deixa ser conhecido pelo que aparece fora. 

O homem tem, pois um lado de fora e um de dentro e ambos circunscrevem o eu, sendo que o corpo põe à mostra a alma, diz o filósofo: “quando falamos com alguém estamos vendo sua alma como um mapa marinho diante de nós. E elegemos o que se pode dizer e desculpamos o que se deve calar, esquivando dos recifes daquela alma” (idem, p. 589). O que Ortega y Gasset está dizendo é que não somos de todo opacos, de algum modo nosso corpo deixa ver a alma, é transparente.

A descrição do contorno do eu encontra a alma como o primeiro círculo e só depois aparece a dimensão social. No entanto, se as coisas parecem ser assim ao eu adulto, a gênese da circunstância e seu desenvolvimento não se dá nesta ordem. Primeiro o eu reconhece o nós, o cultural, o que está longe do eu e só depois é que descobre o lado de dentro. Ou, como afirma o filósofo em Egípcios (1925 ): “O que primeiro se forma de cada alma é sua periferia, a película que forma os demais, a pessoa e o eu social” (p. 716). Só depois descobrimos nossa intimidade como um mundo próprio de experiências íntimas, representações e sentimentos.

!


quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

O EVANGELHO SEGUNDO O McDONALD’S

A necessidade da ideologia para a rede fast-food

"A fundamentação da ideologia para o mundo do trabalho está pautada no modelo de produção atual, denominado de toyotismo, com dimensões bem mais abrangentes que o modelo de produção fordista, sem, no entanto, fugir da forma produtora de mercadorias do sistema capitalista. O impacto do toyotismo, porém, é mais ágil e lucrativo na produção de mercadorias, causando diferentes e novas conseqüências diretas para o trabalhador, com a busca não mais da forma individual de produzir, mas da integração dos trabalhadores em equipe.

Neste modelo insere-se, de acordo com o que pesquisamos, a rede de fast-food McDonald’s, na qual o trabalho em equipe possui um importante papel dentro da organização da empresa. As metas são traçadas e destinadas às equipes de trabalho que, movidas pelos “prêmios”, instalam a competitividade e todos trabalham em ritmo acelerado. Este espírito de equipe criado pela empresa permite que o trabalhador permaneça trabalhando mesmo após as oito horas diárias permitidas.

O trabalho em equipe favorece à empresa por existir uma maior cobrança sobre o trabalhador, permitindo que se cobre deste trabalhador o cumprimento de determinados conhecimentos que extrapolam as exigências da função para a qual foi contratado. Para tanto, a rede promove competições com a finalidade de provocar no trabalhador o conhecimento de procedimentos que envolvem todo o processo produtivo. O conteúdo das competições implica saber exatamente, por exemplo, o tempo exato de fritura para preparo do hambúrguer, da batata e dos demais alimentos que comercializam. A equipe ainda deve saber como funcionam os equipamentos, qual o peso exato dos produtos e o tempo de preparo de cada um; enfim, além de dominarem o trabalho de todas as estações de produção, inclusive a de caixa, devem ter conhecimento de toda a informação referente ao funcionamento dos maquinários que operam. Para tanto , não poupam esforços. Como afirmam em seus depoimentos:

quando se aprende uma estação de trabalho, por exemplo, a chapa, onde frita o hambúrguer para colocar no lanche, cada estação tem um papel que chama nível de verificação. São listas de procedimentos de trabalho (...) mas a gente tem que saber dados do produto da estação, o equipamento, aí a gente leva o manualzinho, que é um livrinho, para casa, para estudar. Eu comecei a levar pra casa, e a maioria dos colegas também, desde que comecei a trabalhar e ficava estudando, estudando para ir bem, eu e minha equipe, nas competições (Funcionário da rede, em entrevista para esta pesquisa).

Além do trabalho em equipe, ocorrem também competições entre elas, abordando o funcionamento do maquinário que operam, possibilitando, desta forma, o conserto, caso ocorra algum problema técnico ou numa eventual emergência, descartando a necessidade de um técnico para reparar pequenos problemas e, conseqüentemente, não demandando interrupção da produção.

Existem competições dentro da empresa que faz com que o funcionário não se dedique à empresa só na hora do trabalho (...) só os funcionários extremamente capacitados, treinados e muito interessados sabem qual o peso, especificações de equipamento que só o técnico sabe. Então, o que agente faz: acaba levando os livrinhos para casa, porque a gente não tem tempo de estudar na hora do trabalho, a gente não pára, em casa a gente fica decorando, para ser o melhor da estação, para vencer a competição da loja e fazer a loja vencer a competição do setor e, depois, representar o setor junto dos outros setores (Funcionário da rede, em entrevista para esta pesquisa).

Podemos crer, desta forma, que o espírito de competição disfarça uma maior exploração do trabalhador, que constantemente busca superar-se, ultrapassando, muitas vezes, seu período de trabalho sem remuneração. Para safar-se das horas extras, a empresa, através de seus gerentes, influencia cautelosamente os trabalhadores a registrarem seus cartões de ponto e voltarem ao trabalho.

Na ausência de bons salários as redes tentam inculcar o espírito de equipe nos jovens. Àqueles que não trabalham com afinco, que chegam tarde ou que relutam em ficar além do horário é transmitida a noção de que estão dificultando a vida de todos os demais, deixando os amigos e colegas na mão. (SCHLOSSER, 2002, p. 102)

Verifica-se que as práticas trabalhistas do McDonald’s são semelhantes à do sistema de linha de montagem, como o fordismo, em que existe a divisão do trabalho, mesclada hoje com o toyotismo:

No balcão da frente, caixas registradoras computadorizadas soltam seus pedidos. Assim que um pedido é feito, botões se acendem, sugerindo outros itens do cardápio a serem acrescentados. Os funcionários que trabalham no balcão são instruídos a aumentar o tamanho de um pedido com recomendações de promoções especiais, empurrando sobremesas, apontando para a lógica financeira por traz da compra de um refrigerante maior. Ao mesmo tempo em que fazem isso, são instruídos a se comportarem de maneira agradável e amigável. (SCHLOSSER, 2002, p. 96)

Para o sucesso desta forma de organização nos restaurantes, a rede investe pesado no treinamento de sua gerência, que coordena diretamente o trabalho dos atendentes. De acordo com um dos gerentes que entrevistamos, seu perfil deve ser de alguém simpático, orgulhoso da empresa em que trabalha, um exemplo a ser seguido, já que iniciou sua carreira como atendente ; no entanto, nem todos conseguem manter esta simpatia constante. Em muitas entrevistas, os atendentes reclamaram da forma de tratamento dos gerentes, que muitas vezes agem com estupidez e gritam, fazendo exigências impossíveis de serem cumpridas. Como disse um funcionário, “na hora de maior movimento a gente tem de fazer as coisas ainda mais rápido, e se é um dia que a gente não tá muito ligado, o gerente grita mesmo” (Funcionário do McDonald’s, em entrevista para esta pesquisa).

A estratégia construída pela rede torna a recompensa verbal um substituto do pagamento de horas-extras e de melhores salários, ocultando, desta forma, a verdadeira intenção da empresa, que é de maior exploração da força de trabalho e, conseqüentemente, maior lucratividade.

O lucro, desta forma, é a sustentação do sistema capitalista, que inverte propositalmente sua lógica, separando o trabalhador do que produz, ou seja, o criador é separado de sua criação, o que acarreta a construção metafísica do processo produtivo social.

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social existente fora deles, entre objetos. Por meio desse qüiproquó os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas físicas metafísicas ou sociais. (MARX, 1983, p. 71)

A nossa pesquisa sobre a rede McDonald’s evidenciou que o trabalho continua a ser, na sociedade contemporânea, uma centralidade fundamentalmente humana, havendo, sim, uma amplitude do entendimento do que vem a ser o ser social da classe trabalhadora.

Uma noção ampliada de classe trabalhadora inclui, então, todos aqueles e aquelas que vendem sua força de trabalho em troca de salário, incorporando, além do proletário industrial, dos assalariados do setor de serviços, também os proletários rurais, que vendem sua força de trabalho para o capital. Essa noção incorpora o proletário precarizado, o subproletário moderno part time, o novo proletário dos Mcdonald’s, os trabalhadores terceirizados e precarizados, os trabalhadores da economia informal, além dos trabalhadores desempregados (ANTUNES, 2000, p. 103).

O que já foi demonstrado nos escritos de Marx, que aponta para a ruptura do trabalho com a lógica do capital, permanece, uma vez que a forma de produzir continua sendo ditada pelo capitalismo. O trabalhador não perde, dessa maneira, seu potencial criador de valor, havendo, sim, uma mudança no interior desta categoria trabalho , com aumento da tecnologia. Nem por isso deixa de ser um modelo capitalista de produção, havendo somente uma mudança na produção de mercadorias, própria do sistema capitalista. Diretamente relacionada com este assunto, entendemos ser a ideologia o momento ideal da ação humana. Como declara Lukács: “nasce direta e necessariamente do hic et nunc sociedade” (LUKÁCS, 1981, p. 446)27.

Esse poder que a ideologia exerce desempenha função específica e determinada por uma dada situação social favorável à sua tendência e ao seu desenvolvimento histórico, como Lukács coloca. Apenas com o intuito de delimitarmos o que compreendemos por ideologia, afastamo-nos da utilização que a reduz a simples falseamento da consciência, uma vez que a:

Ideologia não é a consciência, mas uma forma específica desta; especificidade cujo traço marcante é o de estar voltado à prática, o de estar presente em toda a prática humano-social. Tendo em vista essa sua característica essencial, a ideologia não pode ser o mesmo que consciência da realidade, pois as generalizações produzidas pela ideologia estão sempre orientadas pela práxis, pelo objetivo de transformar ou manter uma realidade dada. (LUKÁCS apud VAISMAN, 1986, p. 53)

Sendo assim, a ideologia funciona como um momento ideal que antecede e orienta a ação, na medida em que a espécie humana é um ser fundamentalmente prático. Neste sentido, o enfoque que nossa pesquisa aborda passa necessariamente pelo poder da ideologia, uma vez que as condições capitalistas exigem do trabalhador práticas que são contrárias aos seus interesses:

O poder da ideologia dominante é indubitavelmente imenso, mas isso não ocorre simplesmente em função da força material esmagadora e do correspondente arsenal político-cultural à disposição das classes dominantes. Tal poder ideológico só pode prevalecer graças à vantagem da mistificação, por meio da qual as pessoas que sofrem as conseqüências da ordem estabelecida podem ser induzidas a endossar, consensualmente, valores e políticas práticas que são de fato absolutamente contrários aos seus interesses vitais. (MÉSZÁROS, 1996, p. 26)

No tocante especificamente ao que estamos tratando, para a realização de uma maior exploração, o trabalhador precisa estar em “harmonia” com as práticas determinadas.

Obrigar as pessoas a se submeter aos ditames do trabalho realizado como um “hábito” mecânico – ditames que emanam do impulso inexorável do capital para o lucro – foi transformado em uma virtude inquestionável. (MÉSZÁROS, 1996, p. 89)

O discurso sobre as novas formas de trabalho é, fundamentalmente , uma racionalização ideológica que, se não aplicada na prática, poderá gerar conflitos de classes. Assim, para aprovar a contínua viabilidade da ordem econômica estabelecida, a ideologia desempenha um papel importante no processo de readaptações estruturais.”

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É isso!

Fonte:

CARMEN LUCIA RODRIGUES ALVES: “O EVANGELHO SEGUNDO O McDONALD’S UM ESTUDO SOBRE O PROCESSO DE PRODUÇÃO DA FAST-FOOD”. (Dissertação apresentada aoPrograma de Estudos PósGraduados em História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em História (Área de Concentração: História Social), sob orientação do Prof. Dr. Antonio Rago Filho). Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 2006 .

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Melhor não falar do aspecto militar...

"Com todo o meu respeito por Xico Xavier que me parece ter sido uma pessoa séria, mas, a meu ver, a velha ordem está a cair, sim, de facto, mas já se levanta uma outra: os países BRICS, os países liderados pela China que fazem parte da Organização de Xangai, que são praticamente todos os países asiáticos, o que significa mais de 2/3 da humanidade. A velha ordem está a cair, ou seja, O Ocidente, EUA, Canadá, Austrália, Inglaterra, e Europa, esta última se continuar a portar-se como vassala dos EUA, a China já é praticamente a maior potência económica mundial, e é melhor não falar do aspecto militar. É melhor começar a procurar-se informação fora dos meios habituais e canais de informação ocidentais, e provavelmente ter-se-á uma grande surpresa. Não simpatizo muito com este tipo de filosofias apocalipticas! Informação sobre os BRICS é praticamente ignorada em Portugal, país provinciano e periférico, e neste momento com dirigentes politicos que são apenas e unicamente vassalos e criados dos grandes senhores que governam o mundo. E, apesar de tudo, os povos e cidadãos europeus estão neste momento a começar a abrir os olhos e a revoltar-se." 

(comentário de Natercia Pedroso no facegrupo “Que futuro para a Humanidade”)


Elogio del Murciélago ....



O conceito de circunstância em Ortega y Gasset*
José Mauricio de Carvalho1
Universidade Federal de São João del-Rei

A multiplicidade de perspectivas e a fidelidade à própria


Ao comentar o que está entorno do eu, Ortega y Gasset destaca a singularidade do olhar que o revela. É sobre a unicidade deste olhar que vamos tratar agora. Parte da singularidade possui uma raiz cultural como o filósofo esclarece no já mencionado ensaio De Madrid a Astúrias o los dos paisajes, onde comenta a diferença de perspectiva entre homens de diferentes regiões. Diz:

“que o olhar asturiano, em geral, do norte é distinto do castelhano e isto não é uma maneira de dizer. Segundo parece nada ignora, a vista e o ouvido procedem a diferenciação sofrida ao longo do movimento evolutivo” (p. 256).

A diferença entre as pessoas de grupos distintos que é visível na descrição da paisagem é menos verificável no uso da técnica e mais explícita na expressão dos sonhos. Os sonhos singularizam mais os grupos que o uso da tecnologia. Portanto é o lado de dentro que mais marcadamente diferencia os homens de diferentes grupos, ele esclarece em Elogio del Murciélago:

“O homem de Calcutá e o de Paris, quando querem transportar algo usam identicamente a roda. Em contrapartida, se diferenciam quando se põem a sonhar” (p. 320). Logo, a tecnologia é mais generalizada entre os grupos humanos que os sonhos.

Outro aspecto da circunstância que diferencia o olhar do eu é o momento histórico. O homem ordinariamente busca o prazer e evita a dor, diz o filósofo acompanhando Sigmund Freud (1856–1939), mas algumas vezes este princípio de origem fisiológica se altera porque a circunstância social o modifica.


Afirma Ortega y Gasset que frequentemente “os homens se preocupam mais em buscar prazeres que evitar as dores, mas outras vezes ocorre o inverso” (idem, p. 31). Esta diferença na topografia comportamental tem uma raiz cultural porque o homem estabelece uma relação ativa com o meio, isto é, ele reage ao mundo natural, mas não responde sempre da mesma forma. Ele vê o mundo de modo distinto e reage a ele de maneira diversa. O homem ao reagir modifica o ambiente geográfico que lhe serve de base para a vida. Descreve o pensador em Temas de viaje: “A terra influi no homem, porém o homem não é um ser reativo, sua resposta pode transformar a terra em torno” (p. 372). Esta mudança do meio é uma característica do modo humano de ser, pois o homem é capaz de transformar o meio para torná-lo mais de acordo com suas necessidades.

Este reconhecimento da atividade humana como indicativo do seu modo de ser é uma constatação que ficou da primeira fase de seu pensamento, quando o pensador se movia sob a influência do culturalismo alemão. Esta questão se explicita adiante, onde ele diz:

A vida não é recepção do que se passa fora, antes pelo contrário, consiste em pura atuação, viver é interior, portanto, um processo de dentro para fora, em que invadimos o contorno com atos, obras, costumes, maneiras, produções segundo estilo originário que está previsto em nossa sensibilidade (idem, p. 378).

No mundo cultural, a situação econômica tem peso marcante e influi o modo de olhar o mundo, conforme notou Karl Marx (1818-1883) ao estudar os movimentos da sociedade. Ortega y Gasset concorda que, pelo menos no século XIX, deu-se maior importância à economia que aos outros aspectos da vida social, o que faz a teoria de Marx verdadeira em termos gerais. Afirma em La interpretación bélica de la história (1926): “O homem moderno vinha progressivamente convertendo-se em homem econômico. Ele se preocupava, sobretudo, de usar meios úteis. Sentia a vida como um afã utilitário” (p. 526).

O que confere credibilidade e verdade à teoria de Marx é a circunstância histórica da sociedade européia do seu tempo. No entanto ela não serve para explicar o mundo quando as circunstâncias culturais se modificaram, fato que ocorreu nos últimos tempos.

A sexualidade humana, o fato de que a humanidade é feita de homens e mulheres, é uma circunstância que afeta o modo de olhar o mundo. A mulher, mais do que o homem, afirma o filósofo em Divagación ante el retrato de la marquesa de Santillana (1918) publicado em El espectador VIII:

“não faz depender sua felicidade da benevolência do público, nem a submete à aceitação ou repulsa o que é mais importante em sua vida” (p. 688).


Este aspecto físico da circunstância se reflete na condição psicológica de homens e mulheres. As mulheres têm uma vaidade mais explícita do que o homem, mas esta vaidade afeta menos seu mundo interior. O homem diversamente, apesar de ostentar uma vaidade menos explícita, a cultiva mais profundamente em seu interior. Afirma: “Se o talento ou a autoridade política aparecessem na face, como ocorre com a beleza, a presença da maior parte dos homens seria insuportável” (idem, p. 689).

As características psicológicas de homens e mulheres se mostram de muitos modos. Um outro exemplo de como a mulher vive mais voltada para seu íntimo está na forma de viver o recato. Para Ortega, o que a mulher pretende esconder com mais força é o seu íntimo e não o seu corpo. “Os gestos de pudor não são senão a forma simbólica [...] desse recato espiritual” (idem, p. 689).

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

EN ESTE MOMENTO MISMO EN ESTE TRABAJO HEME AQUÍ

Jacques Derrida

Traducción de Patricio Peñalver, en DERRIDA, J., «Cómo no hablar y otros textos», Proyecto A, Barcelona, 1997, pp. 81-116. Edición digital de Derrida en castellano.

-Él habrá obligado.


En el mismo instante, me estás oyendo, acabo de decirlo. Él habrá obligado. Si me oyes, ya eres sensible al extraño acontecimiento. No has sido visitada, pero como tras el paso de un visitable singular, ya no reconoces los lugares, incluso aquellos en los que sin embargo la pequeña frase -¿de dónde viene, quién la ha pronunciado?- deja todavía perderse su resonancia.

Como si, desde ahora, ya no habitásemos ahí, como si, a decir verdad, no hubiésemos estado nunca en nuestra casa. Pero no estás inquieta, eso que sientes, algo tan inaudito pero tan antiguo, no es un malestar, y si algo te afecta sin haberte tocado, no por eso se te priva de nada. Ninguna negación debería poder medirse, para describirlo, con lo que aquí pasa.

Fíjate, puedes de nuevo oírte completamente sola repitiendo las tres palabras («Él habrá obligado»), no dejas de oír su rumor y su sentido. Ya no estás sin ellas, sin esas palabras discretas, y por eso mismo ilimitadas, desbordantes de discreción. Yo mismo no sé ya dónde pararlas. ¿Qué las rodea? Los bordes de la frase quedan anegados en la bruma. Parece, sin embargo, muy neta y claramente recortada en su brevedad autoritaria, completa, sin apelación, sin la espera de ningún adjetivo, de ningún complemento, ni siquiera de ningún nombre: él habrá obligado. Pero justamente nada la rodea lo bastante para asegurarnos de sus límites. La sentencia no es evasiva, pero su borde se sustrae. De ella, de ese movimiento que no se resume en ninguna de esas, una, dos, tres palabras («Él habrá obligado»), de una, dos, cuatro sílabas, de ella ya no podrás decir que no sucede nada en este mismo momento. Pero ¿qué? Falta la orilla, los bordes de una frase pertenecen a la noche.

Él habrá obligado -alejado de todo contexto-.

Oyes bien, alejado, lo cual no impide, al contrario, la proximidad. Lo que ellos llaman un contexto, que viene a estrechar el sentido de un discurso, siempre más o menos, no está jamás simplemente ausente, simplemente es más o menos estricto. Pero no hay ahí ningún corte, ningún enunciado está jamás cortado de todo contexto, aquel no anula éste jamás sin resto. Así pues, hay que negociar, tratar, transigir con los efectos de borde. Hay incluso que negociar lo que no se negocia y desborda todo contexto.

Aquí, en este mismo momento en que heme aquí, intentando darte de entender, el borde de un contexto es menos estrecho, menos estrictamente determinante de lo que suele creerse, se tiene costumbre. «Él habrá obligado», he aquí una frase que puede parecer -terriblemente para algunos- indeterminada. Pero el alejamiento que se nos ofrece aquí no vendría tanto de una cierta esencia de borde, muy aparente («Él habrá obligado» sin sujeto nombrable, sin complemento, sin atributo, sin pasado ni futuro identificables en esta página, en este trabajo en el momento en que te las entiendes para leerla actualmente). Más bien de causa de un cierto adentro, de lo que se dice y del decir de o que se dice en la frase, y que, desde dentro, si puede decirse de nuevo, desborda infinitamente, de un golpe, todo contexto posible. Y esto en el mismo momento en que, por ejemplo en un trabajo -pero tú no sabes todavía lo que quiero decir con esa palabra, trabajo (ouvrage)-, lo completamente otro que habrá visitado esta frase negocia lo no-negociable con un contexto, negocia su economía como la de lo otro.

Él habrá obligado.

Debes encontrarme enigmático, un poco complaciente o perverso en la cultura del enigma, cada vez que repito esa pequeña frase, siempre la misma, y, a falta de contexto, cada vez más oscura. No, lo digo sin pretender producir efecto, es justo la posibilidad de esa repetición lo que me interesa, lo que te interesa también de ti antes incluso de que tengamos que encontrarla interesante, y quisiera aproximarme lentamente (de ti, quizás, pero según esa proximidad que liga, diría él, a primera vista, con el otro desparejado, antes de todo contrato, sin que ningún presente pueda juntar ningún contacto), aproximarme lentamente a esto, que ya no llego a formalizar desde el momento en que el acontecimiento («Él habrá obligado») habrá desafiado precisamente, en la lengua, esta potencia de formalizacion. Él habrá obligado a comprender, digamos más bien a recibir puesto que la defección, una defección más pasiva que la pasividad, forma parte del juego en este caso, él habrá obligado a recibir completamente de otro modo la pequeña frase. Que yo sepa él no la ha pronunciado jamás tal cual, eso importa poco. Él habrá obligado a «leerla» completamente de otro modo. Y para hacernos (sin hacer nada) recibir de otro modo, y recibir de otro modo el de-otro-modo, no ha podido actuar de otro modo más que negociando con el riesgo: en la misma lengua, en la lengua de lo mismo, puede siempre recibirse mal ese dicho de otro modo.

Antes incluso de esta falta, su riesgo contamina toda proposición. ¿En qué se convierte entonces esa falta? Y si ésta es inevitable ¿de qué clase de acontecimiento se trata? ¿Dónde tendrá éste lugar?

Él habrá obligado. Por alejado que resulte, ciertamente hay contexto en esta frase.

Lo oyes resonar, en este mismo momento, en este trabajo.

Lo que llamo así -este trabajo- no está, sobre todo no está dominado por el nombre de Emmanuel Levinas.

En su ánimo, más bien le está dado. Está dado según su nombre, en su nombre tanto como de su nombre. Hay, pues, ocasiones múltiples, probabilidades, no puedes evitar acudir a ellas, de que el sujeto de la frase «Él habrá obligado» sea Enmanuel Levinas.

Pero no es seguro. E incluso si se pudiese estar seguro de eso, ¿se habría respondido así sin embargo de la cuestión: quién es «Él» en esta frase?

Después de un título extraño que parece una cita cifrada en sus comillas invisibles, la situación de esta frase «princeps» no te deja todavía saber de título de qué lleva Él una mayúscula. Quizás no sólo de título del incipit, y en esa hipótesis de otra mayúscula o de la mayúscula del Otro, está atenta a todas las consecuencias. Éstas arrastran al juego del irreemplazable Él, que se somete de la sustitución, como un objeto, en lo irreemplazable mismo. Él, sin cursivas.

Me pregunto de dónde viene que deba dirigirme a ti para decir esto. Y ¿por qué, después de tantos ensayos, de tantos fracasos, heme aquí obligado a renunciar a la neutralidad anónima de un discurso propuesto, en su forma al menos, a no importa quién, pretendiéndose dominar a sí mismo y a su objeto en una formalización sin residuos? No pronunciaré tu nombre, no lo inscribiré tampoco, pero tú no eres anónima en el momento en que heme aquí diciéndote esto, enviándotelo como una carta, dándotela de oír o de leer, importándome infinitamente más dártela que lo que ella podría trasmitir, en el momento en que me llega de ti el deseo que tienes de la carta, en el momento en que me dejo dictar por ti lo que querría darte desde mí mismo. ¿Por qué? ¿Por qué en este mismo momento?

Supón que al darte -poco importa qué-, quiera darle de él, a Enmanuel Levinas. No tributarle algo, por ejemplo, un homenaje, ni siquiera entregarme a él, sino darle algo que escape del círculo de la restitución o de la «cita» («La proximidad -escribe él no entra en ese tiempo común de los relojes que hace posible las citas. La proximidad es trastorno»). Querría hacerlo sin falta, con un «sin-falta» que no pertenece ya al tiempo ni a la lógica de la cita. Haría falta, pues, que, más allá de toda restitución posible, mi gesto actuase, sin deuda, en la ingratitud absoluta. La trampa está en que entonces estoy rindiendo homenaje, el único homenaje posible a su obra, a lo que su obra dice de la Obra: «La obra pensada hasta el fondo exige una generosidad radical del movimiento que, en lo Mismo, va hacia lo Otro. La Obra exige, por consiguiente, una ingratitud del otro». Lo habrá escrito dos veces, dos veces en apariencia literalmente idéntica, en La huella del otro y en La significación y el sentido. Pero no puede hacerse, volveré de esto, la economía de esta serialidad.

Supón, pues, que quiera dar, a E.L., y más allá de toda restitución. De mi parte o de la suya. Tendré que hacerlo, sin embargo, conforme a lo que él habrá dicho de la Obra en su obra, en la Obra de su obra. Seguiré estando cogido en el círculo de la deuda y de la restitución con las que habrá que negociar lo no-negociable. Me debatiré interminablemente y desde siempre, y antes incluso de haberlo sabido, hasta el momento en que afirmaría quizás la disimetría absolutamente anacrónica de una deuda sin préstamo, sin reconocimiento, sin restitución posible.

Según la cual él habrá inmemorablemente obligado, antes incluso de llamarse con el nombre que sede, antes de pertenecer al género que sea. La conformidad del con comforme no es ya pensable en la lógica de la verdad que domina -sin poder mandar sobre ellas- nuestra lengua y la lengua de la filosofía. Si, para dar sin restituir, debo conformarme a lo que dice de la Obra en su obra, a lo que da en ésta también como nuevo trazado del dar, si más precisamente debo conformar mi gesto a lo que hace la Obra en su Obra, que es más viejo que su obra, y cuyo Decir, según sus mismos términos, no se reduce a lo Dicho, henos aquí empeñados, antes de cualquier empeño, en una increíble lógica, formal y no formal. Si restituyo, si restituyo sin falta, estoy en falta. Y si no restituyo, dando más allá del reconocimiento, corro el riesgo de la falta. Por el momento dejo a esta palabra -la falta- toda la libertad de estos registros, desde el crimen a la falta de ortografía: en cuanto al nombre propio de lo que se encuentra aquí en juego, en cuanto al nombre propio de lo otro, eso vendrá a ser quizás lo mismo. ¿Habrá que inventarlo, el nombre de lo otro? Pero ¿qué quiere decir inventar?, ¿encontrar, describrir, desvelar, hacer venir allí donde aquel estaba, sobrevenir allí donde aquel no estaba? ¿Siempre sin prevenir?

Ya estás prevenida, ese es el riesgo o la ocasión de esa falta que me fascina o me obsesiona en este mismo momento, y en lo que puede convertirse un escrito fallido, una carta fallida (ésta que te escribo), lo que puede quedar de ella, lo que da que pensar de un texto o de un resto la ineluctable posibilidad de una falta o un fallo como ése. Ineluctable desde el momento en que la estructura de «falibilidad» es a priori más vieja que todo a priori. Si alguien (Él) te dice desde un principio: «no me devuelvas lo que yo te dé», estás en falta antes incluso de que haya acabado de hablar. Basta con que lo oigas, con que empieces a comprender y a reconocer. Has empezado a recibir su conminación, a rendirte a lo que dice, y mientras más le obedezcas no restituyéndole nada mejor le desobedecerás y te volverás sordo a lo que te dirige. Esto podría parecer una paradoja lógica o una trampa. Pero es «anterior» a toda lógica. He hablado por error de trampa hace un instante. Esto no se siente como una trampa más que a partir del momento en que, por voluntad de dominio y de coherencia, se pretendiese escapar a la disimetría absoluta. Sería una manera de reconocer el don para rehusarlo. Nada es más difícil que aceptar un don. Ahora bien, lo que «quiero» «hacer» aquí es aceptar el don, afirmarlo y reafirmarlo como lo que he recibido. No de alguien que habría tenido la iniciativa de eso, sino de alguien que habría tenido la fuerza de recibirlo, de reafirmarlo. Y si es así como yo te doy (a mi vez), eso no formará una cadena de restituciones, sino otro don, el don del otro. La invención del otro. ¿Es eso posible? ¿Habrá sido eso posible? Pero ¿no debe haber tenido ya lugar eso, antes que todo, para que la cuestión pueda surgir de ahí, cosa que la hace caduca por anticipado?

El don no es, no se puede preguntar «qué es el don», pero es con esa condición como habrá habido bajo ese nombre o bajo otro un don.

Supón, pues: más allá de toda restitución, en la ingratitud radical (pero, cuidado, no sin que importe cuál, no la que sigue perteneciendo al círculo del reconocimiento y la reciprocidad), deseo (ello desea en mí pero el ello no es no-yo neutro) intentar dar a E.L. ¿Esto o aquello? ¿Tal o cual cosa? ¿Un discurso, un pensamiento, un escrito? No, eso seguiría dando lugar a intercambio, comercio, reapropiación económica. No, sino darle el dar mismo del dar, un dar que ni siquiera sea ya un objeto o un llamado presente, puesto que todo presente permanece en la esfera económica de lo mismo, ni un infinitivo impersonal (así, hace falta que el «dar» horade aquí el fenómeno gramatical dominado por la interpretación corriente de la lengua), ni alguna operación o acción lo bastante idéntica a sí misma como para volver a lo mismo. Este «dar» no debe ser ni una cosa ni un acto: de una cierta forma debe ser alguno (o alguna) que no sea yo: ni él («él»). Extraño, ¿no?, este exceso que desborda la lengua en todo instante y que sin embargo la requiere, la pone en movimiento incesante en el mismo momento de atravesarla. Esta travesía no es una transgresión, el paso de un límite cortante, la misma metáfora del desbordamiento no le conviene ya desde el momento en que implica todavía alguna linealidad.

Antes incluso de que lo intente o desee intentarlo, supón que el deseo de este don sea reclamado en mí por el otro, sin que no obstante esté obligado a eso, al menos antes de toda obligación de coacción, contrato, gratitud o reconocimiento: un deber sin deuda, una deuda sin contrato. Esto tendría que pasar al margen de él, o tendría que pasar con no importa quién. Pero eso exige a la vez este anonimato, esta posibilidad de sustitución indefinidamente equivalente, y la singularidad, no, la unicidad absoluta del nombre propio. Más allá de cualquier cosa, de todo lo que podría extraviarlo o seducirlo hacia otra cosa, más allá de todo lo que podría regresar a mí de una manera u otra, un don tal tendría que ir derecho a lo único, a lo que su nombre habrá nombrado únicamente, a eso único que habrá dado su nombre. Ese derecho no depende de ningún derecho, de ninguna jurisdicción trascendente al don mismo, es el derecho de lo que él llama, en un sentido que quizás no comprendes todavía porque él trastorna la lengua cada vez que la visita, la rectitud o la sinceridad.

Eso que su nombre habrá nombrado o dado únicamente. Pero (pero habrá que decir siempre pero en cada palabra) únicamente en otro sentido que el de la singularidad que guarda celosamente su propiedad de sujeto irreemplazable en un nombre propio de autor o de propietario, en la suficiencia del yo seguro de su firma. Y supón en fin que en el trazado de ese don cometa una falta, que la deje, como suele decirse, deslizarse, que no escriba rectamente, que no llegue a dar como hay que hacerlo (pero hay que, hay que entender de otro modo el hay que) o que no llegue a darle a él un don que no sea de él. No estoy pensando en este mismo momento en una falta sobre su nombre, su nombre de pila o su nombre patronímico, sino en tal defecto de escritura que acabaría por constituir una especie de falta de ortografía, un mal tratamiento infligido a su nombre propio, lo haga yo o no en conciencia, adrede.

Como en esta falta está implicado tu cuerpo, y como, lo acabo de decir, el don que le haré viene de ti que me lo dictas, entonces tu inquietud se acrecienta. Esa falta, ¿en qué podría consistir? ¿Se la podrá evitar nunca? Si fuese inevitable -y en consecuencia irreparable a fin de cuentas -¿por qué habría que pedir su reparación? Y sobre todo, sobre todo, en esta hipótesis, ¿qué es lo que tendría lugar? Quiero decir: ¿qué pasaría (y al margen de qué, de quién)? ¿Cuál sería el lugar propio de este texto, de este cuerpo fallido? ¿Tendrá propiamente lugar? ¿Dónde? ¿Dónde deberíamos, tú y yo, dejarle ser?

-No, no dejarlo ser. Enseguida tendremos que darle de comer, de beber, y tú me escucharás.

-¿Tiene lugar el cuerpo de un texto fallido? Él, él tiene una respuesta a esta cuestión. Eso parece. No debe haber protocolo a un don, ni preliminares que se demoren en las condiciones de posibilidad. O bien entonces los protocolos deben ya hacer don. Así pues, es a título de protocolo, y sin saber hasta qué punto es probable que haya ahí un don, como quisiera en primer término interrogar por su respuesta a la cuestión del texto fallido. Su respuesta es en primer término práctica. Trata la falta, trata con la falta, escribiendo: de una cierta manera y no de otra. El interés que pongo en la manera como escribe sus trabajos puede parece fuera de lugar: escribir, en el sentido corriente de esta palabra, producir frases y componer, explotar una retórica o una poética, etc., no es lo que a él le importa en última instancia; eso es para él un conjunto de gestos subordinados. Y sin embargo, la obligación que se encuentra en juego en la pequeña frase de hace un momento, creo que se anuda en una cierta manera de ligar: no sólo el Decir a lo Dicho, como dice él, sino el Escribir a lo Dicho y el Decir a lo escrito, y de ligar, ceñir, encadenar, entrelazar según una estructura serial de un tipo singular. Acerca de lo que yo mismo enlazo a esa palabra serie insistiré más tarde.

Así pues, ¿cómo escribe él? ¿Cómo lo que escribe produce trabajo y Obra en el trabajo? ¿Qué hace, por ejemplo y por excelencia, cuando escribe en presente, en la forma gramatical del presente, para decir lo que no se presenta y no habrá sido jamás presente, como que el llamado presente no se presenta más que en nombre de un Decir que lo desborda, por fuera y por dentro, infinitamente, como una especie de anacronía absoluta, la de algo completamente otro que, siendo inconmensurablemente heterogéneo a la lengua del presente y al discurso de lo mismo, deja ahí sin embargo una huella: siempre improbable, pero cada vez determinada, ésta y no otra? ¿Qué hace para inscribir o dejar que se inscriba lo completamente otro en la lengua del ser, del presente, de la esencia, de lo mismo, de la economía, etc., en su sintaxis y en su léxico, bajo su ley? ¿Qué hace para dar lugar, inventándolo, a eso que, más allá del ser, del presente, de la esencia, de lo mismo, de la economía, etc., permanece absolutamente extraño a ese médium, absolutamente desligado de esa lengua? ¿No habrá que invertir la cuestión, al menos aparentemente, y preguntarse si esta lengua no estará desligada de ella misma, y así, abierta a lo completamente otro, a su propio más allá, de tal suerte que se trataría menos de excederla, esta lengua, que de tratar de otro modo con sus propias posibilidades? Tratar de otro modo, es decir, calcular la transacción, negociar el compromiso que dejará intacto lo no-negociable y actuar de forma que la falta, consistente en inscribir lo completamente otro en el imperio de lo mismo, altere lo mismo lo suficiente como para absolverse de sí misma. Esa es a mi juicio su respuesta; y esta respuesta de hecho, si se puede decir, esta respuesta en acto, en obra más bien en la serie de las negociaciones estratégicas, esta respuesta no responde a un problema o a una cuestión, responde al Otro -para el Otro- y aborda la escritura orientándose a ese para-el Otro. Es a partir del Otro como entonces la escritura da lugar a, y produce, acontecimiento, inventa el acontecimiento, por ejemplo, éste: «Él habrá obligado».

Es esta respuesta, la responsabilidad de esta respuesta lo que yo querría interrogar a su vez. Interrogar no es la palabra, sin duda, y sigo sin saber calificar lo que pasa aquí entre él, tú y yo, que no pertenece al orden de las cuestiones y las respuestas. Sería más bien su responsabilidad -y lo que él dice de la responsabilidad- lo que nos interroga por encima de todos los discursos codificados sobre el tema.

Así pues, ¿qué hace él? ¿Cómo actúa cuando, bajo una falsa apariencia de presente, en un más-que-presente, habrá escrito esto, en donde leo lentamente para ti, en este mismo momento, escucha, lo que dice de Psyché, del «psiquismo como grano de locura».



La responsabilidad para con el Otro -a contrapelo de la intencionalidad y del querer que la intencionalidad no alcanza a disimular- no significa el desvelamiento de algo dado y su recepción o percepción, sino mi exposición al otro, que es previa a toda decisión. Reivindicación del Mismo por el otro en el corazón de mí mismo, tensión extrema del mandato que el otro ejerce en mí sobre mí, toma traumática del Otro sobre el Mismo, tensa hasta el punto de no dejar al Mismo tiempo de esperar al Otro. [...] El sujeto se aliena en la responsabilidad en los trasfondos de su identidad con una alienación que no vacía al Mismo de su identidad, sino que lo constriñe ahí, con una asignación irrecusable, se constriñe como persona allí donde nadie podría reemplazarlo. La unicidad, fuera de concepto, psiquismo como grano de locura, el psiquismo que es ya psicosis, no un Yo, sino yo bajo asignación. Asignación a identidad para la respuesta de la responsabilidad en la imposibilidad de hacerse reemplazar sin carencia. A este mandamiento mantenido sin relajo sólo puede responder «heme aquí», en donde el pronombre «yo» está en acusativo, declinado antes de toda declinación, poseído por el otro, enfermo,[i] idéntico. Heme aquí -decir propio de la inspiración que no es ni el don de bellas palabras, ni de cánticos-. Constricción a dar, a manos llenas, y por consiguiente a la corporeidad. [...] Subjetividad del hombre de carne y sangre, más pasiva en su extradición al otro que la pasividad del efecto en una cadena causal; pues está más allá de la actualidad misma que es la unidad de la apercepción del yo pienso, arrancarse-a-sí-mismo-para-otro en el dar-al-otro-el-pan-de-su-boca; no una relación formal, anodina, sino toda la gravedad del cuerpo extirpado de su conatus essendi en la posibilidad del dar. La identidad del sujeto se acusa aquí no por medio de un descansar sobre sí, sino por una inquietud que me persigue fuera del núcleo de mi sustancialidad.



(Habría querido considerar lentamente el título del trabajo que acabo de citar, Autrement qu’étre ou audelá de l’essence [De otro modo que ser o más allá de la esencia]: en una singular locución comparativa que no forma una frase, un adverbio [de-otro-modo] prevalece desmesuradamente sobre un verbo [y qué verbo: ser] para decir un «otro», que no puede formar, ni siquiera modificar un nombre o un verbo, ni ese nombre-verbo que corresponde siempre a ser, para decir un «otro» que no es ni adjetivo ni nombre, sobre todo no la simple alteridad que pondría de nuevo el de-otro-modo, esta modalidad sin sustancia, bajo la autoridad de una categoría, de una esencia, de un ser de nuevo. El más allá de la verbalización [constitución en verbo] o de la nominalización, el más allá de la symploké que liga los nombres y los verbos para producir el juego de la esencia, ese más allá deja una cadena de huellas, otra symploké, ya «en» el título, más allá de la esencia, sin dejarse incluir en él sin embargo, deformando más bien la curvatura de sus bordes naturales.)

Lo que acabas de oír, el «presente» del «Heme aquí» entregado al otro y declinado antes de toda declinación. Este «presente» era ya muy complicado en su estructura, se diría casi que estaba contaminado por aquello mismo de lo que habría tenido que apartarse. No es el supuesto firmante del trabajo, E.L., quien dice «Heme aquí», yo actualmente. Él cita un «heme aquí», tematiza lo no-tematizable (para utilizar ese vocabulario al que habrá atribuido una función conceptual regular -y un poco singular- en sus escritos). Pero más allá del Cantar de los cantares o del Poema de los poemas, la cita de cualquiera que dijera «heme aquí» debe marcar esta extradición en que la responsabilidad por el otro me entrega al otro. Ninguna marca gramatical en cuanto tal, ninguna lengua, ningún contexto bastarán para determinarlo. Esta cita-presente que, en cuanto cita, parece borrar el acontecimiento presente de un «heme aquí» irreemplazable, sirve también para decir que en «heme aquí» el Yo no se presenta ya como un sujeto presente a sí, que se hace presente a sí desde sí mismo (yo-me): está declinado, antes de toda declinación, «en acusativo» y él.

-¿Él o ella, ya que se requiere la interrupción del discurso? ¿No es «ella» en el Cantar de los cantares? ¿Y quién sería «ella»?
(.)

Con dos páginas de intervalo, de un intervalo que ni puede ni debe reducirse y que constituye aquí una serialidad absolutamente singular, el mismo «en este mismo momento» no parece repetirse sino para dislocarse sin remisión. Lo «mismo» del «mismo» de «en este mismo momento» ha señalado su propia alteración, aquella que desde siempre lo habrá abierto a lo otro. El «primero», aquel que constituía el elemento de la reapropiación en el continuum, habrá sido obligado por el «segundo», el otro, el de la interrupción, antes incluso de producirse y para producirse. Habrá formado texto y contexto con él, pero en una serie en la que el texto compone con su propia (si se puede decir todavía) desgarradura. El «en este mismo momento» no compone con él mismo más que según una anacronía desmesurada, inconmensurable consigo misma. La textualidad singular de esta «serie» no encierra al Otro, por el contrario, se abre desde la irreductible diferencia, la pisada o la huella anterior a todo presente, anterior a todo momento presente, anterior a todo lo que creemos entender cuando decirnos «en este mismo momento».

Esta vez, el «en este mismo momento», que sin embargo se ha citado (re-citado de una página a otra para marcar la interrupción del relato), no habrá sido, como el «heme aquí» de hace un instante, una cita. Su iteración pues es iterable y está repetido en la serie- no es del mismo tipo. Si la lengua está ahí a la vez (como dirían los teóricos de los speech acts) utilizada y mencionada, la mención no es de la misma especie que la del «heme aquí» que se encontraba también, hace un instante, citado, en el sentido tradicional de este término. Es, pues, un extraño acontecimiento. En él las palabras describen (constatan) y producen (realizan) indecidiblemente. Un escrito y un escribir implican inmediatamente el «yo-ahora-aquí» del escritor. El extraño acontecimiento lleva consigo una repetición serial, pero se repite de nuevo en otra parte, como serie, regularmente. Por ejemplo, al final de «Le non de Dieu d’apres quelques textes talmudiques» (Archivio di Filosofía, Roma, 1969). La expresión «en este mismo momento» o «en este momento» aparece ahí dos veces, con tres líneas de intervalo, ofreciéndose la segunda como repetición deliberada, si no estrictamente citadora, de la primera. La alusión calculada señala ahí en todo caso el mismo momento (que es cada vez ahora) y la misma expresión, aunque entre un momento y otro el mismo momento no sea ya el mismo. Pero si no es ya el mismo, el asunto no está en que, como en la «certeza sensible» de la Fenomenología del espíritu, el tiempo ha pasado (desde que escribí Das Jetzt ist die Nacht) y que el ahora no es ya el mismo ahora. El asunto está primeramente en otra cosa, en la cosa como Otro. Escucha, es de nuevo el alma, o psyché:

Responsabilidad que, antes del discurso que se apoya en lo dicho, es probablemente la esencia del lenguaje.
(.)
He aquí la extraña fuerza de un texto que se entrega a ti sin defensa aparente; la fuerza no está en lo escrito, desde luego, en el sentido corriente de ese término, sino que obliga a lo escrito en cuanto que ella solamente lo hace posible. El trastorno que aquella refiere (la Relación que aquella relata al Otro proporcionando el relato) no es jamás seguro, perceptible, demostrable: ni una conclusión demostrativa ni una mostración fenoménica. Ningún trastorno controlable por definición, nada legible en el interior de la lógica, de la semiótica, de la lengua, dentro de la gramaticalidad, del léxico, de la retórica, con sus criterios internos, presuntamente internos, pues nada hay menos seguro que los límites rigurosos de un tal interior.

Hace falta que ese elemento interno haya sido agujereado, horadado (calado), desgarrado, y además más de una vez, de forma más o menos regular, para que esta regularidad de la desgarradura (yo diría la estrategia de la desgarradura, si esa palabra estrategia no siguiese haciendo alusión demasiado -para él, no para mí- al cálculo económico, a la astucia de la estratagema y la violencia guerrera allí donde por el contrario hay que calcularlo todo para que el cálculo no dé razón de todo) haya obligado a recibir la orden que dulcemente te ha sido dada, confiada, de leer así y no de otro modo, de leer de otro modo y no así. Lo que yo quisiera darte aquí (de leer, de pensar, de amar, de comer, de beber, y como tú quieras) es lo que habrá dado él, y cómo da «en este mismo momento». El gesto es muy sutil, casi imperceptible. A la vista de lo que con él se pone en juego, debe permanecer casi imperceptible, solamente probable, no para ser decisivo (cosa que no debe ser) sino para responder de la ocasión ante el Otro. También el segundo «en este momento», el que da su tiempo a este lenguaje que «quizás tan sólo ha hecho posible esa Relación» con lo otro que toda presencia, no es otro que el primero, es el mismo en la lengua, lo repite con algunas lineas de intevalo y su referencia es la misma. Y sin embargo todo habrá cambiado, la soberanía se habrá vuelto ancilar. El primer «momento» daba su forma o su lugar temporal, su «presencia» a un pensamiento, un lenguaje, una dialéctica «soberanos con respecto a esta Relación». Entonces habrá -quizás, probablemente- pasado esto: que el segundo «momento» haya forzado al primero hacia su propia condición de posibilidad, hacia su «esencia», más allá de lo Dicho y del Tema. Aquel habrá desgarrado por anticipado pero con posterioridad en la retórica serial- la envoltura. Pero esta desgarradura misma no habrá sido posible sino según una cierta escotadura del segundo momento y una especie de contaminación analógica entre las dos, una relación entre dos inconmensurables, una relación entre la relación como relato ontológico y la Relación como responsabilidad del Otro.

(.)
Una sola interrupción en un discurso no realiza su labor, y se deja reapropiar inmediatamente. El hiato debe insistir, de ahí la necesidad de la serie, de la serie de nudos. La paradoja absoluta (de lo absoluto), es que esta serie, inconmensurable con ninguna otra, serie fuera de serie, no anuda hilos sino interrupciones entre los hilos, huellas de intervalos que el nudo debe sólo remarcar, dar para remarcar. Para nombrar esa estructura he escogido la palabra serie, para anudar a ella a mi vez series (fila, sucesión, hilera consecuente, encadenamiento ordenado de una multiplicidad regular, entrelazamiento, línea, descendencia) y seira (cuerda, cadena, lazo, cordón, etc). Se aceptará la ocasión de encontrar en la red de la misma línea uno al menos de los cuatro sentidos del sero latino (entrelazar, trenzar, encadenar, atar) y el eirv griego que dice (o anuda) el entrelazamiento del cordón y del decir, la symploké del discurso y del lazo. Esta serie ab-soluta permanece sin un solo nudo, pero anuda una multiplicidad de nudos reanudados, que no re-anudan hilos sino interrupciones sin hilo que dejen abierta la interrupción entre las interrupciones. Esta interrupción no es un corte, no depende de una lógica del corte sino de la de-stricturación absoluta. Por eso la abertura de la interrupción no es jamás pura. Y para distinguirse, por ejemplo, de lo discontinuo como síntoma en el discurso de Estado, no puede romper el parecido más que no siendo no importa cuál, y en consecuencia determinándose también en el elemento de lo mismo. No importa cuál: es aquí donde se sitúa la enorme responsabilidad de una obra -en el Estado, la filosofía, la medicina, la economía, etc-. Y el riesgo es ineluctable, está inscrito en la necesidad (otra palabra para decir el lazo que no se puede cortar) de la estructura, la necesidad de encadenar los momentos, aunque sean de ruptura, y de negociar la cadena, aunque sea de forma no dialéctica. Ese riesgo está él mismo regularmente tematizado en su texto. Por ejemplo, y tratándose precisamente de abertura: «¿Cómo pensar la abertura a lo otro que el ser sin que la abertura, como tal, signifique enseguida una reunión en coyuntura, en unidad de la esencia, donde enseguida se hundiría el sujeto mismo a quien se desvelaría esa reunión, tendiéndose el lazo con la esencia enseguida en la intimidad de la esencia?», etc. (De otro modo que ser...).

Hay, pues, varias maneras de encadenar las interrupciones y los pasos más allá de la esencia, de encadenarlos no simplemente en la lógica de lo mismo sino en el contacto (en el contacto sin contacto, en la proximidad) de lo mismo y de Otro; hay varias maneras de confeccionar tal indesmallable más bien que tal otro, pues el riesgo reside en que no valen igual todos. Ahí se siguen negociando una filosofía, una estética, una retórica, una poética, una psicagogia, una economía, una política: entre, si pudiese decirse todavía, el más acá y el más allá. Con una vigilancia que se diría probablemente de cada instante, para salvar la interrupción sin que al guardarla a salvo se la pierda todavía más, sin que la fatalidad de reanudamiento venga estructuralmente a interrumpir la interrupción, E.L. asume a este respecto riesgos calculados, tan calculados como es posible. Pero ¿cómo calcula? ¿Cómo calcula lo Otro en él para dejar sitio a lo incalculable? ¿Cuál habrá sido el estilo de este cálculo, si se debe llamar estilo a este idioma que marca la negociación con un sello singular e irreemplazable? ¿Y si los testimonios que da al otro de lo Otro, lo que le constituye a él mismo, según su propia palabra, en rehén, no son absolutamente irreemplazables?
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Interrumpo de nuevo. ningún fénix hegeliano tras esta consumación. Este libro no es singular sólo porque no se unifica como ningún otro. Su singularidad está en esta serialidad, encadenamiento ab-soluto, riguroso pero con un rigor que sabe aflojarse como hace fàlta para no volverse a hacer totalitario, o incluso viril, y para entregarse a la discreción del otro en el hiato. Es en esta serialidad y no en otra (la fila en su colocación homogénea), en esta serialidad de trastorno, como hay que entender cada filosofema descolocado, desencajado, desarticulado, inadecuado y anterior a sí mismo, absolutamente anacrónico a lo que se dice de él, por ejemplo, «la pasividad más pasiva que toda pasividad» y toda la «series» de las sintaxis análogas, todas las «fórmulas repetidas en este libro». Estás oyendo ahora la necesidad de esta repetición. Te acercas así al «él» que pasa, sucede en este trabajo desde el que se dice que «hace falta», «hay que». Éstas son las últimas líneas:

En este trabajo [la cursiva es mía, J.D.] que no aspira a restaurar ningún concepto arruinado, la destitución y la des-situación del sujeto no quedan sin significación: tras la muerte de un cierto dios, habitante en los trasmundos, la sustitución del rehén descubre la huella escritura impronunciable -de aquello que, siempre ya pasado- siempre «él» no entra en ningún presente, y a lo que ya no convienen los nombres que designan seres, ni los verbos en los que resuena su esencia sino que, Pro-nombre, marca con su sello todo lo que puede llevar un nombre.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

La invención de la verdad

Jacques Derrida

Traducción de Mariel Rodés de Clérico y Wellington Neira Blanco en AA. VV., Diseminario. La descontrucción, otro descubrimiento de América, XYZ Editores, Montevideo, 1987, pp. 49-106. Edición digital de Derrida en castellano. 


El ars inveniendi o el ordo inveniendi concierne tanto el buscar como el encontrar en el descubrimiento analítico de una verdad que ya se encuentra ahí. Para no encontrar al azar de un encuentro o de un “hallazgo” de una verdad que se encuentra ya ahí, es necesario un programa de búsqueda, un método y un método analítico, que se denomina método de invención. Sigue el ordo inveniendi (distinto del ordo exponandi), es decir, el orden analítico. “Hay dos clases de métodos: uno para descubrir la verdad, que llamamos análisis o método de resolución, y que podemos llamar también método de invención; el otro para hacerlo entender a los otros cuando se lo ha encontrado, que llamamos síntesis, o método de composición, y que también podemos llamar método de doctrina”. (Lógica de Port Royal, 1v, 11). Transpongamos: qué se dirá, a partir de este discurso de la invención, de una Fábula como la de Francis Ponge?. ¿Su primera línea descubre, inventa algo?. ¿O bien expone, enseña lo que acaba de inventar en ese instante?. ¿Resolución o composición?. ¿Invención o doctrina?. (continuará).

Se puede constatar en La lógica de Port Royal lo que podemos también verificar en Descartes o en Leibniz: incluso si debe regularse en una verdad “que debe encontrarse en la cosa misma independientemente de nuestros deseos” (111, XX, a 1-2), la verdad que nosotros debemos encontrar ahí donde se encuentre, la verdad a inventar, es ante todo el carácter de nuestra relación a la cosa misma y no el carácter de la cosa misma. Y esta relación debe estabilizarse en una proposición. La nombraremos a menudo “verdad”, sobre todo cuando pongamos esta palabra en plural. Las verdades son proposiciones verdaderas (11, 1X; 111, X, 111, xx, b, 1; IV, IX; V, XIII), dispositivos de predicación. Cuando Leibniz habla de “los inventores de la verdad”, es necesario recordarlo, como lo hace Heidegger en Der Satz von Grund, se trata de productores de proposiciones y no solamente reveladores. La verdad califica la conexión del sujeto y del predicado. Nunca se ha inventado algo, es decir una cosa. En suma jamás se ha inventado nada. Tampoco se ha inventado una esencia de las cosas, en este nuevo universo del discurso, solamente la verdad como proposición. Y este dispositivo lógico-discursivo puede ser llamado tekhné en el sentido amplio de la palabra. Por qué?. No hay invención sino a condición de una cierta generalidad, y si la producción de una cierta idealidad objetiva (u objetividad ideal) da lugar a operaciones recurrentes, por lo tanto a un dispositivo utilizable. Si el acto de invención no puede tener lugar más que una sola vez, el artefacto inventado, ese artefacto debe ser esencialmente repetible, trasmisible y trasponible. Los dos tipos extremos de las cosas inventadas, el dispositivo maquinal por una parte, la narración ficticia o poética, por otra parte, implican a la vez la primera vez y todas las veces, el acontecimiento inaugural y la iterabilidad. Una vez inventada, si se puede decir, la invención no es inventada si en la estructura de la primera vez no se anuncia o se promete la repetición, la generalidad, la disponibilidad común y por lo tanto la publicidad.

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  Esta iterabilidad se marca, y por lo tanto se observa, al origen de la instauración inventiva, la constituye, forma allí un recipiente desde el primer instante, una especie de anticipación retrovertida: “por la palabra por”....


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Descartes se sirve en dos oportunidades de la palabra “invención” en la célebre carta a Mersenne (20 de noviembre de 1629) con respecto a un proyecto de lengua y de escritura universal:

“...la invención de esta lengua depende de la verdadera filosofía; pues es imposible de otra manera enumerar todos los pensamientos de los hombres, y ponerlos en orden, ni siquiera distinguirlos de manera que sean claros y simples, que es a mi entender el mayor secreto que podamos tener para adquirir la buena ciencia... Ahora bien afirmo que esta lengua es posible y que podemos encontrar la ciencia de la que depende, por medio de la cual los campesinos podrían juzgar la verdad de las cosas mejor de lo que lo hacen ahora los filósofos...” (subrayo).

La invención de la lengua depende de la ciencia de las verdades, pero esta ciencia debe ella misma ser encontrada por aquella y gracias a la, invención de la lengua que esa ciencia habrá permitido, todo el mundo, incluidos los campesinos, podrá juzgar mejor la verdad de las cosas. La invención de la lengua supone y produce la ciencia, interviene entre dos saberes como un procedimiento metódico o tecno-científico.

Sobre este punto, Leibniz sigue a Descartes, pero si reconoce que la invención de esta lengua depende de la “verdadera filosofía”, no depende -agrega él- de su perfección. Esta lengua puede ser “establecida aunque la filosofía no sea perfecta: y a medida que la ciencia de los hombres se acreciente esta lengua se acrecentará también. Mientras esperamos, será un auxilio maravilloso y para servirse de lo que sabemos, y para saber lo que nos falta y para inventarlos medios de llegar allí, pero sobre todo para exterminar las controversias en las materias que dependen del razonamiento. Entonces razonar y calcular será la misma cosa. (Opúsculos y fragmentos inéditos. ed. Couturat págs. 27 y 28).

La lengua artificial no se sitúa solamente en la llegada de una invención de la cual procedería, procede también de la invención, su invención sirve para inventar. La nueva lengua es ella misma un ars inveniendi o el código idiomático de este arte, su espacio de firma. Tal una inteligencia artificial, gracias a la independencia de cierto automatismo, preverá el desarrollo y precederá a la culminación del saber filosófico. La invención sobreviene y previene, excede el saber, al menos en su estado actual, en su estatuto presente. Esta diferencia de ritmo confiere al tiempo de la invención la virtud de una apertura productora, incluso si la aventura inaugural debe ser vigilada en última instancia teleológica, por un analitismo fundamental.

Patentes: la invención del título.


Jacques Derrida

Traducción de Mariel Rodés de Clérico y Wellington Neira Blanco en AA. VV., Diseminario. La descontrucción, otro descubrimiento de América, XYZ Editores, Montevideo, 1987, pp. 49-106. Edición digital de Derrida en castellano.


Estatuto se entiende pues a dos niveles, uno concierne a la invención en general, el otro, a tal invención determinada que recibe un estatuto o su premio por referencia al estatuto general. Siendo irreductible, la dimensión jurídico-política, el índice más útil aquí sería lo que quizás llamamos en francés el “brevet” de una invención, en inglés “patent”. Es primeramente un texto corto, un “breve”, acto escrito por el cual la autoridad real otorgaba un beneficio o un título, incluso un diploma (hoy incluso es significativo que se hable de “brevet” de ingeniero, o técnico para designar una competencia certificada), la patente, es pues, el acto por el cual las autoridades políticas confieren un título público, es decir un estatuto. La patente de invención crea un estatuto o un derecho de autor, un título -y es por eso que nuestra problemática debería pasar por una problemática muy compleja, la del derecho positivo de las obras, de sus orígenes y de su historia actual muy agitada por las perturbaciones de todo tipo, en particular las que vienen de las nuevas técnicas de reproducción o de la telecomunicación. La patente de inventor, stricto sensu, no sanciona más que invenciones técnicas dando lugar a instrumentos reproductibles pero se puede extenderlo a todo derecho de autor. El sentido de la expresión “estatuto de la invención” vine por supuesto de la idea de “patente” pero no se reduce a esa idea.

Por qué he insistido en esto último?. Quizás sea el mejor índice de nuestra situación actual. Si la palabra “invención” conoce una nueva vida, sobre fondo de agotamiento angustiado pero también a partir del deseo de reinventar la invención misma, y hasta su estatuto, es sin duda que en una escala sin medida común con la del pasado, lo que llamamos la “invención” a certificar se encuentre programada, es decir sometida a poderosos movimientos de prescripción y de anticipación autoritarios cuyos modos son múltiples. Y esto sucede también en los dominios del arte o de las bellas-artes así como en el dominio tecno-científico. Por todas partes el proyecto de saber y de investigación es en principio una programática de las invenciones. Podríamos evocar las políticas editoriales, los pedidos de los comerciantes de libros o de cuadros, los estudios de mercado, la política de la investigación y las “finalizaciones” como se dice ahora, que ella determina a través de las instituciones de investigación y de enseñanza, la política cultural, sea o no estatal; podríamos también evocar todas las instituciones, privadas o públicas, capitalistas o no, que se declaran ellas mismas como máquinas de producir y de orientar la invención. Pero a título de índice no consideremos más que la política de las patentes. Disponemos hoy de estadísticas comparativas con respecto a este tema de las patentes de invención depositadas todos los años por todos los países del mundo. La competencia que está en su pleno apogeo, por razones económico-políticas evidentes, determina decisiones a nivel gubernamental. En el momento cuando Francia, por ejemplo, consideraba que debe avanzar en esta carrera de las patentes de invención, el gobierno decide acrecentar tal puesto presupuestal e inyectar fondos públicos, vía tal ministerio, para ordenar, inducir, o suscitar las invenciones certificadas. Según trayectos más inaparentes o más sobredeterminados todavía sabemos que tales programaciones pueden investir la dinámica de la invención diciéndose más “libre”, la más salvajemente “poética” e inaugural. Esta programación, cuya lógica general, si hubiese una, no sería necesariamente la de representaciones conscientes, pretende, y allí logra llegar a veces hasta cierto punto, asignar hasta el margen aleatorio con el cual le es necesario contar y que ella integra en sus cálculos de probabilidades. Hace algunos siglos se representaba la invención como un acontecimiento errático, el efecto de un golpe de genio individual, de un azar imprevisible. Eso a menudo por una falta de conocimiento, desigualmente extendido, de las obligaciones efectivas de la invención. Hoy, es quizás debido a que conocemos demasiado la existencia, al menos, sin contar el funcionamiento de las máquinas de programar la invención, que soñamos con volver a inventar la invención más allá de las matrices del programa. Pues una invención programada, ces todavía una invención?. ¿Es un acontecimiento donde el porvenir viene a nosotros?.

Volvamos modestamente sobre lo andado. El estatuto de la invención en general, como de una invención particular, supone el reconocimiento público de un origen, más precisamente de una originalidad. Este debe ser asignable y volver a un sujeto humano individual o colectivo, responsable del descubrimiento o de la producción de una novedad a partir de entonces disponible para todos. Descubrimiento o producción?. Primer equívoco, si al menos no se reduce el producir en el sentido de puesta al día por el gesto de conducir o de adelantar, lo que volvería a develar o descubrir. En todo caso, descubrimiento o producción, pero no creación. Inventar, es venir a encontrar allí, descubrir, develar, producir por primera vez una cosa, que puede ser un artefacto, pero que en todo caso podía encontrarse allí de manera todavía virtual o disimulada. La primera vez de la invención no crea jamás una existencia y es sin duda por cierta reserva con respecto a una teología creacionista que se quiere hoy volver a reinventar la invención. Esta reserva no es necesariamente atea, puede al contrario, querer reservar justamente la creación a Dios y la invención al hombre. Ya no se dirá que Dios ha inventado al mundo, como una totalidad de las existencias. Podemos decir que Dios ha inventado las leyes, los procedimientos o los modos de cálculo para la creación (“dum calculat fit mundus”) pero no que ha inventado el mundo.

De la misma forma ya no se dirá que Cristóbal Colón ha inventado América, salvo en el sentido vuelto arcaico según el cual, como en la invención de la Cruz, esta vuelve solamente a descubrir una existencia que ya se encontraba ahí. Pero el uso o el sistema de convenciones modernas, relativamente modernas, nos prohibiría hablar de la invención cuyo objeto sería una existencia como tal. Si se hablara hoy de la invención de América o del Nuevo Mundo, se designaría más bien el descubrimiento o la producción de nuevos modos de existencia, de nuevas formas de aprehender, de proyectar o de habitar el mundo pero no la creación o el descubrimiento de la existencia misma del territorio llamado América.

Ustedes ven pues dibujarse una línea de división o de mutación en el porvenir semántico o en el uso reglamentado de la palabra “invención”. La describiré sin endurecer la distinción y manteniéndola en el interior de esta gran y fundamental referencia a la tekhné humana, a ese poder mitopoético que asocia la fábula, la narración histórica o epistémica. ¿Cuál es esta línea de división?. Inventar ha significado siempre “volver a encontrar por primera vez” pero hasta el alba de lo que podríamos llamar la “modernidad” tecno-científica y filosófica (a título de indicación empírica muy vulgar e insuficiente, digamos S. XVII), podríamos todavía hablar de invención con respecto a existencias o verdades que, sin ser, naturalmente, creadas por la invención, son descubiertas por ellas o develadas por primera vez; encontradas ahí. Ejemplos: Invención del cuerpo de San Marcos, todavía, pero también invención de verdades, de cosas verdaderas. Es así como la define Cicerón en el De Inventione (I-III). Primera parte del arte de oratoria, la invención es “excogitatio rerum verarum, aut verisimilum, quae causam probabilem reddan”[xi] La “causa” en cuestión es la causa jurídica, el debate o la controversia entre las “personas determinadas”. Pertenece al estatuto de la invención que ella concierna también siempre a las cuestiones jurídicas de estatutos.


Luego, según un desplazamiento ya iniciado pero que me parece se estabiliza en el S. XVII, puede ser entre Descartes y Leibniz, casi ya no hablaremos más de la invención como descubrimiento develador de lo que se encontraba ya ahí (existencia o verdad) sino cada vez más, incluso únicamente, como descubrimiento productivo de un dispositivo que podemos llamar técnico en el sentido amplio, técno-científico o técno-poético. No se trata solamente de una tecnologización de la invención. Esta siempre estuvo ligada a la intervención de una tekhné, pero es a partir de esta tekhné que la producción -y no solamente el develamiento- de un dispositivo maquinal relativamente independiente; él mismo capaz de una cierta recurrencia autorreproductiva y también de una cierta simulación reiterante, va a dominar el uso de la palabra “invención”.