No pequeno ensaio intitulado Estética em tranvía atrás citado, Ortega y Gasset apresenta a vida de cada pessoa como sendo a realização do que ela é. Este projeto é condição da vida de cada um e o revelador de sua realidade. Cada homem olha o mundo de um modo, o que faz da circunstância algo singular porque o entorno ao eu é afetado pelo modo como ele é percebido. Assim, é importante que cada indivíduo seja, antes de tudo, fiel a si mesmo, à sua maneira de ver o mundo, teria dito logo no início em Verdad y perspectiva, igualmente apresentado no volume primeiro de El espectador, pois cada pessoa é única e só ela é capaz de dizer determinados aspectos da circunstância. Diz o filósofo: “Aspiro contagiar as demais pessoas para que sejam fiéis cada qual à sua perspectiva” (p. 20).
A forma como cada pessoa olha o mundo a distinguirá das demais, afirma Ortega y Gasset em Dios a la vista (1926). Por exemplo, a atitude agnóstica, de tanta importância na tradição filosófica, é uma forma de olhar o mundo. Ele afirma: “O homem agnóstico é um órgão de percepção acomodado exclusivamente ao imediato” (p. 495). O gnóstico, ao contrário, olha o imediato com desconfiança e busca explicações além de sua experiência próxima. Gnóstico significa para o filósofo não só o homem religioso e nem apenas o que vê disputas entre bem e mal na história, mas aquele a que repugna o imediato. Neste sentido, o movimento gnóstico remonta a Platão que já não se encanta com o imediato diz o filósofo: “Já em Platão se nota o início de tal repugnância, que vai subindo como uma maré, incontrolável” (idem, p. 495).
A fidelidade à própria perspectiva não se restringe a um certo modo de pensar o mundo, mas também ao respeito aos sentimentos vividos, esclarece o filósofo em Apatia artística (1921):
Eu creio que a maior parte dos homens vivem uma vida interior, de certa maneira apócrifa. Suas opiniões não são, na verdade, suas opiniões, são estados de convicção que recebem de fora por contágio e o que acreditam sentir não o sentem realmente, senão que, melhor, deixam repercutir em seu interior emoções alheias (p. 335).
O sentido íntimo de fidelidade a um modo de ser é um compromisso do homem com ele mesmo, uma vida autêntica depende da fidelidade a si. É claro que esta fidelidade tem também um aspecto social ou coletivo, pois para respeitar a própria perspectiva há aspectos culturais. Por exemplo, enquanto o espanhol parece ter certa vergonha quando se percebe se deliciando com alguma coisa, o francês, ao contrário, entende que, diz em Tema de viaje: “Viver é gozar o viver. Porém advirta-se que gozar não significa uma atitude meramente passiva, gozo de uma atividade enérgica, mercê da qual nos voltamos para o espontâneo” (p. 374). Portanto, a fidelidade a um modo de ser inclui aspectos diversos da circunstância pessoal, afetiva, intelectual e grupal. O que o homem aprende no grupo tem raízes profundas em suas virtudes e impulsos, o que significa que a fidelidade ao cultural é também a fidelidade a seus impulsos profundos transformados pela vida coletiva. Em outras palavras a exigências mais íntimas de cada um encontram no espaço social um lugar para se realizar. A fidelidade à perspectiva é frequentemente o respeito a uma força íntima que se expressa numa profissão, diz em Intimidades (1929): “às vezes a vocação do indivíduo coincide com as formas de vida, que se desenvolve segundo ofícios ou profissões. Há indivíduos que, com efeito, são vitalmente pintores, políticos, negociantes ou religiosos” (p. 656). No entanto, a expressão vital de uma perspectiva pode se realizar em diversas profissões, como também se pode exercer uma profissão sem qualquer fidelidade à própria vocação. Em resumo, o desejo humano é a fidelidade à perspectiva, idéias, sentimentos e vocação. A fidelidade a esta perspectiva é também o respeito ao que há de mais singular no homem, sua limitação ou finitude. A fidelidade ao humano inclui o respeito à morte, não à morte química que é infra-humana ou à imortalidade que é sobre-humana, mas ao respeito do homem pelo fim que está obrigado a viver. Diz em Notas del vago estio (1925): “A humanização da morte só pode consistir em usar dela com liberdade, com generosidade e com graça. Sejamos poetas da existência que sabem ajustar sua vida a rima exata em uma morte esperada” (p. 433).
Finalmente a fidelidade a si tem implicações no fato de sermos homem e mulher. Na mulher, o que mais encanta não é a elegância das veste e das atitudes, mas a riqueza do íntimo construído em horas de solidão ou mergulho em si, esclarece o pensador: “A mulher admirável que agora nos preocupa revela em todo seu ser um tesouro composto das horas de solidão”
(idem, p. 450).
José Mauricio de Carvalho
Universidade Federal de São João del-Rei
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