sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Circunstância em “El espectador”, o entorno ao eu

José Mauricio de Carvalho
Universidade Federal de São João del-Rei

Partimos do seguinte: circunstância é um conceito fundamental para se entender o raciovitalismo orteguiano. Não é um exagero o que escreveu uma estudiosa de Ortega y Gasset (AMOEDO, 2002; p. 224/5): “circunstância – com tudo que ela implica – representa a intuição fundamental de Ortega, o que determina a diferença específica de seu filosofar e a raiz que explica todas as suas atividades”.

Nos diversos ensaios de El espectador o problema do que envolve o eu aparece e é investigado. Em Verdad y Perspectiva (1916), o filósofo associa ser espectador com buscar a verdade. Desde a Antiga Grécia os filósofos aceitaram o desafio de buscar a verdade e este é um problema para a multidão de pensadores que se inserem na tradição filosófica.

Para o filósofo é importante mirar o mundo “com olhar suplicante de náufrago, a quem importa a verdade, a pura verdade, o que as coisas são por si mesmas” (ORTEGA Y GASSET, 1998; p. 16). Trata-se de atitude fundamentalmente filosófica ou teórica que se opõe à atitude prática, por exemplo, dos políticos. Ortega y Gasset a percebe em Platão (438-348 a.C.) que, no livro da República, diz o que são os homens que se dedicam a contemplar a verdade.

Afirma: “são os especulativos, e à frente deles os filósofos, os teorizadores” (idem, p. 17). Ortega y Gasset não fala, contudo, de uma contemplação de idéias que transcendem a consciência como fazia Platão, mas da descrição da vida em todas as suas manifestações. Eis como o faz: “olha, porém o que vê é a vida que flui ante ele” (idem, p. 18). O Espectador é o homem que contempla o mundo com o propósito de entendê-lo e o olha buscando compreender o que ele é fundamentalmente? Em nosso tempo o tema que pede esclarecimento é a vida. E o espectador a contempla como uma subjetividade singular, um eu concreto e não como uma razão abstrata ou uma consciência universal. Esta conclusão tem implicações importantes. Cada um é um eu particular, a verdade se apresenta para ele de modo singular como esclarece Ortega y Gasset: “cada homem tem uma missão de verdade. Donde está minha pupila não está outra, o que da realidade vê minha pupila não o vê outra” (idem, p. 19). Portanto, a verdade se apresenta a cada um segundo uma perspectiva.

O olhar, ou melhor, os sentidos e a consciência do indivíduo se dirigem para o seu entorno imediato, não para algo distante e abstrato. Assim, é o olhar dirigido à mulher que toma um bonde onde alguém está. O que contempla o observador? A beleza dela. Seria a beleza expressão de uma forma pré-existente ou uma ideia pura de beleza, como dizia Platão, com a qual comparamos aquela mulher concreta? Não, responde o filósofo em Estética em el tranvia(1916). “não há um modelo único e geral a que imitam as coisas reais” (p. 34).

Cada mulher é única em sua beleza e, por sua vez, cada homem é capaz de vêla de um modo distinto, igualmente singular. Esta atitude de olhar e avaliar a beleza à volta, num fenômeno que Ortega y Gasset chama de cálculo da beleza feminina, é atitude fundamental de avaliação do entorno. Esta atitude não se aplica só a esta situação, mas a todas nas quais o eu é desafiado a contemplar e estimar. Ele esclarece: “o cálculo da beleza feminina uma vez realizado serve de chave para todos os demais reinos de valorização” (idem, p. 38).

O que o homem avalia? Tudo o que lhe aparece, tudo que está diante dele e lhe oferece resistência. Diz o filósofo no ensaio Tierras de Castilla (1911): “as coisas estão aí, diante de nós, oferecendo-se ou servindo-nos” (p. 43).

A mesma atitude se espera quando a pessoa está diante de ideias e não de fatos, complementa em O gênio da Guerra (1916). No caso são as ideias que estão aí diante de nós e que devem ser examinadas com objetividade, como ele diz: “não interessa desvirtuar as ideias alheias em proveito das próprias.

Ao contrário, o empenho é extrair - a maior quantidade possível de bom sentido” (p. 218). Portanto, em relação a fato ou ideia, o espectador da circunstância busca a verdade ou o bom sentido. Bom sentido é o que nasce da descrição cuidadosa do entorno, da paisagem que envolve o eu enquanto se movimenta ou das ideias que estão diante dele. A paisagem surge numa mirada singular, ela pode ser compartilhada e reconhecida pelos outros, embora seja única em sua gênese. Trata-se de atividade que exige tempo e cuidado, explica Ortega y Gasset no ensaio De Madrid e Asturia o los dos paisages (1915) que está no Espectador III: “Esse tempo e outro são insuficientes para conhecer o corpo e a alma de uma comarca, ainda que se dedicando por inteiro a seu estudo” (p. 251).

Além da perspectiva distinta, a paisagem muda também com o tempo. A descrição da paisagem vista da janela do trem tem semelhança com outras situações de nossa vida. O entorno se transforma à nossa volta, as coisas mudam, temos história. Desde a infância o que está a nossa volta se altera diz o filósofo: “No tempo que dizemos já vem, já vem, a esta paisagem, a esta amizade, a este acontecimento temos que ir preparando os lábios para dizer já se vão, já se vão” (idem, p. 247). E este contorno do eu integra a vida de todos nós, somos um eu e uma circunstância inseparáveis, e um eu histórico, envolvido numa circunstância também histórica. No ensaio Elogio del Murciélago (1921), texto de Espectador IV, Ortega y Gasset fala que a paisagem que envolve o eu funciona como pano de fundo da vida do homem e se explica junto com ela. Este cenário não se separa do eu e se torna, por tal vínculo, algo diverso do que ele é por ele mesmo. Nas palavras do filósofo: “A paisagem tem o destino de ser fundo de algo que não é ele e servir de cenário a uma cena vital” (p. 338). O entorno só faz sentido associado a um eu e este reconhecimento de que não é possível separar o homem do mundo, ou o eu da circunstância que o envolve, explicita-se ainda mais em Conversación em el Golf o la Idea del Dharma (1925), onde afirma:

“Se não existe alguém que ateste a existência das demais coisas, esta seria como nula” (p. 405). Portanto, apesar das diferenças que indicaremos adiante, o raciovitalismo incorpora o que há de essencial na fenomenologia.

O conceito de circunstância contempla o entorno que não se resume à paisagem representada pelo ambiente social ou o nós. Este ponto é marcante no raciovitalismo, o entorno ao eu inclui a intimidade representada pelos mecanismos fisiológicos da vida, das leis que regem a alma e pelas expressões do pensamento ou espírito, tudo isto histórico e escondido em cada homem. Diz o filósofo em Sobre la expresión fenômeno cósmico (1925): “A diferença de todas as demais realidades do universo, a vida é constitutiva e irremediavelmente uma realidade oculta, inespacial, um arcano, um segredo!” (p. 578).

A intimidade ou o lado de dentro que representa a parcela oculta da vida também circunscreve o eu, como também o envolve a situação exterior, a realidade social, econômica, política, temporal, em resumo cultural onde vivemos.

O lado de fora do indivíduo, aquilo que se manifesta para os outros, é expressão do interior que se deixa ser conhecido pelo que aparece fora. 

O homem tem, pois um lado de fora e um de dentro e ambos circunscrevem o eu, sendo que o corpo põe à mostra a alma, diz o filósofo: “quando falamos com alguém estamos vendo sua alma como um mapa marinho diante de nós. E elegemos o que se pode dizer e desculpamos o que se deve calar, esquivando dos recifes daquela alma” (idem, p. 589). O que Ortega y Gasset está dizendo é que não somos de todo opacos, de algum modo nosso corpo deixa ver a alma, é transparente.

A descrição do contorno do eu encontra a alma como o primeiro círculo e só depois aparece a dimensão social. No entanto, se as coisas parecem ser assim ao eu adulto, a gênese da circunstância e seu desenvolvimento não se dá nesta ordem. Primeiro o eu reconhece o nós, o cultural, o que está longe do eu e só depois é que descobre o lado de dentro. Ou, como afirma o filósofo em Egípcios (1925 ): “O que primeiro se forma de cada alma é sua periferia, a película que forma os demais, a pessoa e o eu social” (p. 716). Só depois descobrimos nossa intimidade como um mundo próprio de experiências íntimas, representações e sentimentos.

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