terça-feira, 27 de dezembro de 2016
Elogio del Murciélago ....
O conceito de circunstância em Ortega y Gasset*
José Mauricio de Carvalho1
Universidade Federal de São João del-Rei
A multiplicidade de perspectivas e a fidelidade à própria
Ao comentar o que está entorno do eu, Ortega y Gasset destaca a singularidade do olhar que o revela. É sobre a unicidade deste olhar que vamos tratar agora. Parte da singularidade possui uma raiz cultural como o filósofo esclarece no já mencionado ensaio De Madrid a Astúrias o los dos paisajes, onde comenta a diferença de perspectiva entre homens de diferentes regiões. Diz:
“que o olhar asturiano, em geral, do norte é distinto do castelhano e isto não é uma maneira de dizer. Segundo parece nada ignora, a vista e o ouvido procedem a diferenciação sofrida ao longo do movimento evolutivo” (p. 256).
A diferença entre as pessoas de grupos distintos que é visível na descrição da paisagem é menos verificável no uso da técnica e mais explícita na expressão dos sonhos. Os sonhos singularizam mais os grupos que o uso da tecnologia. Portanto é o lado de dentro que mais marcadamente diferencia os homens de diferentes grupos, ele esclarece em Elogio del Murciélago:
“O homem de Calcutá e o de Paris, quando querem transportar algo usam identicamente a roda. Em contrapartida, se diferenciam quando se põem a sonhar” (p. 320). Logo, a tecnologia é mais generalizada entre os grupos humanos que os sonhos.
Outro aspecto da circunstância que diferencia o olhar do eu é o momento histórico. O homem ordinariamente busca o prazer e evita a dor, diz o filósofo acompanhando Sigmund Freud (1856–1939), mas algumas vezes este princípio de origem fisiológica se altera porque a circunstância social o modifica.
Afirma Ortega y Gasset que frequentemente “os homens se preocupam mais em buscar prazeres que evitar as dores, mas outras vezes ocorre o inverso” (idem, p. 31). Esta diferença na topografia comportamental tem uma raiz cultural porque o homem estabelece uma relação ativa com o meio, isto é, ele reage ao mundo natural, mas não responde sempre da mesma forma. Ele vê o mundo de modo distinto e reage a ele de maneira diversa. O homem ao reagir modifica o ambiente geográfico que lhe serve de base para a vida. Descreve o pensador em Temas de viaje: “A terra influi no homem, porém o homem não é um ser reativo, sua resposta pode transformar a terra em torno” (p. 372). Esta mudança do meio é uma característica do modo humano de ser, pois o homem é capaz de transformar o meio para torná-lo mais de acordo com suas necessidades.
Este reconhecimento da atividade humana como indicativo do seu modo de ser é uma constatação que ficou da primeira fase de seu pensamento, quando o pensador se movia sob a influência do culturalismo alemão. Esta questão se explicita adiante, onde ele diz:
A vida não é recepção do que se passa fora, antes pelo contrário, consiste em pura atuação, viver é interior, portanto, um processo de dentro para fora, em que invadimos o contorno com atos, obras, costumes, maneiras, produções segundo estilo originário que está previsto em nossa sensibilidade (idem, p. 378).
No mundo cultural, a situação econômica tem peso marcante e influi o modo de olhar o mundo, conforme notou Karl Marx (1818-1883) ao estudar os movimentos da sociedade. Ortega y Gasset concorda que, pelo menos no século XIX, deu-se maior importância à economia que aos outros aspectos da vida social, o que faz a teoria de Marx verdadeira em termos gerais. Afirma em La interpretación bélica de la história (1926): “O homem moderno vinha progressivamente convertendo-se em homem econômico. Ele se preocupava, sobretudo, de usar meios úteis. Sentia a vida como um afã utilitário” (p. 526).
O que confere credibilidade e verdade à teoria de Marx é a circunstância histórica da sociedade européia do seu tempo. No entanto ela não serve para explicar o mundo quando as circunstâncias culturais se modificaram, fato que ocorreu nos últimos tempos.
A sexualidade humana, o fato de que a humanidade é feita de homens e mulheres, é uma circunstância que afeta o modo de olhar o mundo. A mulher, mais do que o homem, afirma o filósofo em Divagación ante el retrato de la marquesa de Santillana (1918) publicado em El espectador VIII:
“não faz depender sua felicidade da benevolência do público, nem a submete à aceitação ou repulsa o que é mais importante em sua vida” (p. 688).
Este aspecto físico da circunstância se reflete na condição psicológica de homens e mulheres. As mulheres têm uma vaidade mais explícita do que o homem, mas esta vaidade afeta menos seu mundo interior. O homem diversamente, apesar de ostentar uma vaidade menos explícita, a cultiva mais profundamente em seu interior. Afirma: “Se o talento ou a autoridade política aparecessem na face, como ocorre com a beleza, a presença da maior parte dos homens seria insuportável” (idem, p. 689).
As características psicológicas de homens e mulheres se mostram de muitos modos. Um outro exemplo de como a mulher vive mais voltada para seu íntimo está na forma de viver o recato. Para Ortega, o que a mulher pretende esconder com mais força é o seu íntimo e não o seu corpo. “Os gestos de pudor não são senão a forma simbólica [...] desse recato espiritual” (idem, p. 689).
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