domingo, 28 de agosto de 2016

A arte de conversar – existência, epistemologia e comunicação.

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Por : Daniel Christino


A tratadística francesa e italiana do século XVI e XVII refletiu sobre o problema da comunicação como uma phronesis, uma racionalidade de corte, em manuais e breviários que circulavam ao final do barroco. Nestas reflexões podemos vislumbrar uma abordagem epistemológica ao problema comunicacional ainda anterior ao advento do iluminismo e, por isso, mais comprometida com os elementos existenciais que caracterizam o fenômeno. Partindo deste deslocamento epistêmico, o artigo procura desenhar uma reflexão sobre o conceito de comunicação, situado na crítica da filosofia de Heidegger e Gadamer, que seja capaz de articular elementos existenciais e epistemológicos e de sustentar-se como alternativa à abordagem tradicional dentro do escopo de uma ciência social aplicada.

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Quando Heidegger e Gadamer abordam o fenômeno comunicativo o fazem a partir de uma crítica radical à racionalidade iluminista. Em Heidegger esta crítica está associada ao problema da técnica, mas também ao conceito de ciência e à lógica. Em Gadamer o debate está associado à crítica romântica ao iluminismo e ao resgate de uma epistemologia capaz de retomar a integridade do fenômeno e abordá-la em sua totalidade. Os conceitos de comunicação derivados da filosofia destes autores têm em comum a mesma visada adotada pelos sagazes filósofos da conversação do século XVI: trata-se de abordar o fenômeno em sua raiz humanística.

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 Na dinâmica histórica da formação, aquilo que, a princípio, deixa-se entrever como possibilidade acaba assumido pela consciência numa visão ampla de si mesma e do seu mundo. Em certo sentido a dinâmica da formação guarda, e isso é proposital, uma estreita homologia com a dinâmica do jogo. Somos formados por aquilo que nos envolve e nos atravessa, pela linguagem, pela cultura, pela história. Este tomar consciência de si é, para Gadamer, também um afloramento – à maneira de Hegel – da historicidade do homem. Na formação o que é formado recebe sua “forma” a partir do horizonte de sentido de seu tempo. Rigorosamente falando, o processo de formação é em si mesmo hermenêutico, pois parte-se do que já está dado enquanto herança para se chegar à autonomia que, por sua vez, nada mais é do que confirmação, mesmo se elaborada enquanto crítica, pois brota do solo da tradição.

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A certa altura, em VM, Gadamer diz: “o ser que pode ser compreendido é linguagem”. Além da clara alusão à dimensão ontológica da hermenêutica, a frase indica a centralidade da experiência lingüística para sua filosofia. De certa forma, em oposição a Heidegger, o papel das tonalidades afetivas, tão pronunciado em ST, torna-se secundário. Mesmo quando Gadamer aborda a poética – no Heidegger de ST, juntamente com a retórica, uma forma atrelada à disposição –, sua reflexão desenvolve-se no sentido de considerar o  texto poético uma forma altamente especulativa da linguagem. Em certo sentido, ao dirigir-se para a parte final de VM, Gadamer deixa-se influenciar cada vez mais por Hegel e Platão, embora nunca abandone a centralidade da abertura existencial em sua hermenêutica filosófica.

A arquitetura conceitual que dá forma à noção de linguagem em Gadamer vale-se, fundamentalmente, da metáfora do jogo. Inspirado em Huizinga, Gadamer vê no jogo um elemento estrutural das formas culturais desde suas expressões mais simples até as mais sofisticadas. Ressalta, entretanto, sua dinâmica circular. Todo jogo é uma cena na qual o foco luminoso está sobre os jogadores, mas que não pode existir sem todo o aparato circunstancial à ação destes jogadores. Mais além, da interação entre os jogadores emerge a totalidade do jogo. Ela, por sua vez, transcende tal interação e se afirma como totalidade. Parafraseando Gadamer, não são os jogadores que jogam o jogo, mas é o jogo que, nas ações dos jogadores, conforma-se como tal. Há, portanto, uma tensão entre todo e parte nos jogos e este vai-e-vem – seja entre os jogadores, seja entre a ação deles e a totalidade do jogo – produz um movimento constante de articulação de sentido. Sem os jogadores não há jogo, sem o jogo não há jogadores.

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Contudo, é apenas na efetivação do diálogo – ou, pragmaticamente falando, em seu uso – que a linguagem atualiza sua possibilidade, porque no diálogo entra em jogo a herança semântica e gramatical que tal língua possui. O decisivo aqui é que toda e qualquer língua é vivida – ou melhor, enraíza-se existencialmente – quando no diálogo, na conversação Mesmo que depois Gadamer vá derivar uma homologia entre o diálogo e o texto, dando à hermenêutica uma dimensão prática e universal enquanto teoria da história, o elemento pronunciativo (já visto por Heidegger) põe a linguagem para funcionar. Assim como o jogo, a linguagem só é linguagem efetivamente quando “em movimento”, e é exatamente no diálogo que ela excede os próprios falantes, alçando vôo sobre as paisagens culturais em nome de um horizonte temporal mais amplo.

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Para as pessoas engajadas numa situação de interação comunicativa também a experiência do diálogo torna-se formativa, no sentido exato em que imaginava o Adabe Trublet, ou seja, como constituição do espírito. Para tanto é necessário ter em mente que a comunicação não se deixa entender plenamente como troca de vivências, mas como um modo de ser do homem, na linguagem, enraizado numa totalidade (da história, da cultura, do Ser) que lhe transcende e, por isso, pode proporcionar-lhe uma configuração. Esta é a concepção de comunicação em James Carey, por exemplo. Ao definir comunicação “as a symbolic process whereby reality is produced, maintained, repaired, and transformed” (Carey, 2009), Carey se aproxima da noção de horizonte simbólico de Gadamer. Uma noção já presente na ensaísta de corte, embora ainda ontologicamente ingênua. Ao tratar a conversação como arte, os barrocos estavam se referindo exatamente a esse caráter prático que Gadamer associa à metáfora do jogo. Carey, por sua vez, vê na comunicação um processo cultural de amplo aspecto, embora ele também não avance na direção de uma ontologia propriamente dita. Com Gadamer e Heidegger o fenômeno da comunicação encontra elementos para olhar com mais clareza seus próprios fundamentos. Carey indica, igualmente, que o “pôr-se de acordo” fenomênico é um elemento da cultura Entretanto, em Heidegger a existencialidade do ser humano é, ela mesma, um fundamento ainda mais profundo. Desde o ponto de vista heideggeriano, Carey ainda se move numa dimensão ôntica, na qual a cultura ainda não se vê associada à significância da totalidade conjuntural. A reflexão de Carey para no conceito antropológico de cultura, enquanto Heidegger e Gadamer pretendem discutir seus fundamentos ontológicos. Estes fundamentos estão associados à abertura do homem enquanto Dasein. Colocamos-nos de acordo sobre o que vem ao nosso encontro no mundo, isto é, na ocupação aberta e compreensiva que, mergulhada na linguagem e através do logos “deixa e faz ver” o ente em seu ser. Em outros termos, nos entendemos sobre o sentido da nossa própria humanidade, sobre o nosso ser-aí em conjunto.


Doutor, Universidade Federal de Goiás - Programa de Pós-Graduação em Comunicação,
dchristino@gmail.com


[1] Cf. o exemplo clássico no livro I da Ética a Nicômacos no qual Aristóteles discute as potencialidades para o ensino
da excelência através do exemplo da pedra. Segundo ele, uma pedra tem, por natureza, a finalidade de, quando jogada para
cima, cair de volta ao chão. Seria ridículo imaginar que ela poderia acostumar-se a ficar no alto se jogada inúmeras vezes.
Não está na natureza da pedra fazer outra coisa senão cair.
[2] Cf. (Macdowell, 1970)
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