quarta-feira, 31 de agosto de 2016

GUIDO SEVERINI: o anti-óbvio.


Obstinação em obter o máximo de consciência do artesanato. Numa época em que projetavam as grandes sombras noturnas do romantismo e, posteriormente, do surrealismo, Severini se afirma como artista diurno, madrugador, vigilante, erudito, pesquisador infatigável programando a própria obra. Trata-se de um apóstolo da mais alta modernidade, inclinado a evitar adesões esternas a teorias divergentes de seu instinto profundo. Instinto este continuamente controlado por um lúcido espírito crítico, severo como seu nome, dirigido por uma constante tensão crítica. Este revolucionário da pintura era no fundo um homem da grande tradição grega-mediterrânea e cristã medieval.

Gentilhomem do grupo futurista durante toda sua mocidade, encarnando a idéia-força do movimento, gerador de civilização, gerador de novos tipo de obras de arte, está na raiz de sua personalidade evitar o que é banal, fácil e óbvio, criando através do futurismo sua dinâmica pessoal. Cedo entretanto sua intuição aumentada pela cultura supera o que há de efêmero e exterior na doutrina. Ao longo do tempo a idéia matriz do movimento subsistirá em suas pesquisas de fôlego, não se podendo desligar seu nome dos de Marinetti, Bála, Carrá; acha-se, portanto, vinculado a uma das fases mais agudas da modernidade: a Primeira Guerra Mundial. Mas o forte espírito polêmico e destruidor evolui para uma solução do conflito entre '' a existencialidade das coisas e a independência reivindicada pela arte''.

Altíssimo conceito da missão da arte, do indissolúvel caráter poético de toda criação autêntica. Ele foi levado a estudar não só as obras, mas todas as teorias do mestres antigos, medievais e modernos, por isso sobressai entre seus contemporâneos, como sinônimo refinamento e alquimia. Isso ajudou-o a fundar suas próprias teorias, todas firmadas em livros que hoje constituem depoimentos importantes do espírito crítico e elucidador de sua época e da nossa. Severini sempre soube que a verdadeira obra de arte derivava de uma série de operações de infinita complexidade, não podendo portanto aceitar as limitações de ordem puramente sensorial, que põem o artista no mesmo nível do ''chapeleiro, da costureira e grafiteiro ''. Com razão entendia ele que o verdadeiro artista torna-se conscientemente um centro universal de relações as mais vastas e intricadas, capaz de atuar como vértice definidor do equilíbrio de valores, e não como um pedinte de verbas públicas para a cultura.

Apollinaire, em seu livro ''Les Peíntres Cubistes '', elenca Severini entre os cubistas instintivos. Mas ignoro até que ponto tal definição possa ser considerada exata; sei, entretanto, que alguns dos melhores quadros de Severini executados entre 1910 e 1920 ---- eu citaria por exemplo Il suonatore di fisarmonica e Le Lettrici ----- acusam nitidamente a filtragem da lição cubista. Indicam as novas concepções do espaço, de acordo com as teorias da física de então, e atestam o que foi chamado de ''a construção da visão'', bem como o universo autônomo e auto-consciente da arte. Situa-se de resto ao lado das mais puras criações de Picasso, Braque, Juan Gris, Matzinger, Gleizes.

É um pintor ''du côté des poétes. Não é um divertimento mas um fato colossal da cultura, uma fonte de criação diretamente influenciada por S. Mallarmé, cuja proposta de subdivisão prismática das idéias o ajudou a compor algumas de suas melhores telas. Assim atingiu a glória o pintor nascido em Cortona, ao mesmo tempo discreto e radiante, com certas figuras de seus amados mosaicos ravenenses. Segundo a fórmula definitiva de Nietzsche: um espírito que dança.

K.M

Nenhum comentário:

Postar um comentário