Gisele seguia captando notícias americanas em chinês. ------ Será que o sinal está sendo enviado (?) ------, perguntei. ----- Não (ela disse) mas os salgadinhos, comprimidos, iogurtes, remédios, chocolates, cigarros e outros produtos americanos continuam sendo embalados no alumínio que não pára de chegar da China e falir o setor nacional. Diga o nome de uma cidade chinesa que não cheire a artifício (...) -----, ela disse. Havia um pouco de aguardente de arroz entre nós no quarto. A elocução dela, cheia de idiomatismos preciosistas, continuava meio histérico. O segundo almoço com as francesas do Partido Socialista seria num terraço com vista para o Mercado do Porco de Lancaster. O universo (eu pensava) estava de fato se contraindo numa entidade unitária que estava se completando a si mesma através da destruição da humanidade. No Mercado, às 14:00h, charutos, cigarros, scoth e arrotos muito polidos.... vestida como uma pessoa da classe trabalhadora em época de alta especulação, Clarie, uma figura francesa de moça de pernas rápidas, e no entanto com um vestígio nativo do passo espaçoso dos americanos, fumava seu cigarro numa piteira de ponta metálica. ----- Se você me der uma pitada do seu seleto cigarro Maccoboy (... ) ------, eu disse. Na ocasião, eu estava calçando sapatos ingleses muito caros, com meias berrantes e ligas que contrastavam com minhas pernas musculosas, um efeito geral de gangster bem sucedido que resolveu usar uma fantasia. O assunto do encontro seria o ''Imperialismo ''', ninguém sabia explicar direito qual ou porquê. Apontando com um gesto dramático, Claire disse: ----- Dê só uma olhada. O que você enxerga lá embaixo (?) -----, pessoas zanzando pela margem luminosa de um stand de salsichas defumadas, num galpão de zinco ao longe. Relação com a imagem (?) Coisas descabidas de um filme romeno ? ----- Ora (respondi) enxergo o Mercado do Porco de Lancaster (.) ------, o olhar de Claire era como o meu, procedia apenas por ''campanhas ''; periodicamente, batendo sempre na mesma tecla, com variações apenas de exemplos de provas, piadas, etc. Atualmente era : ''Roland Barthes como agente idealista ''. ------ Resposta errada (protestou ela). O que você enxerga ali são homens e mulheres comuns, cuidando de suas tarefas cotidianas comuns. E se eles votarem como mandam seus patrões, votarão pela propriedade destes e não por sua própria classe, que carecem de controle sobre a emissão de papel-moeda, e não extraem nenhum proveito das imensas reservas internacionais da América, nem dos negociantes que não confessam o excesso de estoque e a disposição para especularem (.) olhe de novo e diga: o que você enxerga agora (?) ------, insistiu ela. Nos olhos de Gisele, parada ao meu lado, eu lia furtivamente uma série de prescrições instantâneas contra a loucura: ''A palavra desordenada dos demônios'', pareciam dizer-me eles. Olhei de novo e vi, nas ruas, esqualidez, lixo de lanchonetes e brinquedos de plástico quebrados, escadas e varandas sem pintura, ainda escuras com a umidade da tarde chuvosa, janelas rachadas que nunca tinham sido consertadas. Ao longo dos meios fios sucediam-se automóveis americanos do século Xx, grandes demais, agora caindo aos pedaços, lanternas traseiras rachadas, rodas sem calotas, pneus furados nas sarjetas. Vozes de mulheres vinham dos alojamentos dos fundos, queixando-se sem parar de crianças que nasceram sem que ninguém as quisesse e que agora se aglomeravam, abandonadas, em torno das únicas vozes simpáticas que haviam em suas casas, as que vinham do aparelho de televisão. ----- Fume um Maccoboy (Clarie disse) Beba alguma coisa. O que você acha de nós, o s franceses (?) ------, ela me perguntou. ------Nunca vi gente tão disposta a arriscar o geral em favor de interesses privados. Em favor deles, o Social -Liberalismo autoritário do momento faz de tudo para não ceder à chantagem do povo desesperado, propenso à intimidação e ao terror. Os franceses são uns colonialistas, em conivência com o imperialismo corporativista e seu cardápio de revisionismos liberais modernos (.) ------, eu disse. Clarie mostrou as gengivas com uma risada cruel e febril. ----- Não é a toa que em Marselhe, sou conhecida como Nellie Tomadevolta (.) Os negros do Caribe ou de Cabo Verde plantam flores e pintam varandas por aqui, e se sentem esperançosos e cheios de energia por estarem nos Estados Unidos, mas os nascidos aqui abraçam há muito tempo a sujeira e a preguiça como forma de protesto, um protesto de escravos que agora persiste como desejo de degradação diante das opções eleitorais disponíveis, pulsão de morte freudiana desafiando aquela injunção básica de todas as tradições espirituais do mundo: ''SEJA LIMPO ''. Além do mais, quando algum americano começa a me falar do seu câncer de próstata ou sobre seu septo que entrou em putrefação e começou a escorrer pus, eu digo: ''Tenho nojo dessas pessoas''. Odeio os americanos porque são um povo doente e ignorante. Meu psiquiatra diz que meu ódio é metabólico, culpa de alguma coisa que tenho no sangue, mesmo assim, a olhos vistos os americanos incham e enegrecem , e seus souks inteiros começam a feder a mijo e lixo hospitalar: eles sofrem em proporções imensas de indigestão, impotência, calvície precoce, e vivem fazendo xixi nas calças e tendo assaduras no cu. São incorrigíveis,ouça oque estou dizendo (.) ------, ela disse. Após ouví-la, senti o banho frio que eu havia tomado de manhã perdurando em mim como uma segunda pele a brilhar sob minhas roupas, uma libação de grande limpeza que desejei repetir imediatamente. Meus pulmões estavam ardendo pelo esforço de conversar com Claire e Emmanuelle, miragens femininas que recuavam na minha mente como uma conspiração contra o público americano em geral. O GRAU ZERO DA ESCRITA. Eu havia sorvido uma bola de fogo (a traverso le foglie). Minha mente trabalhava numa pulsação frenética do tipo ''liga''e ''desliga'', tentando fornecer à conversa fragmentos de coisa julgada, impondo à elas o culto stalinista da minha personalidade e a leitura imediata de minhas condenações. Logomaquia pós-política, multidão falante, alienação de gestos repetitivos, mídia madura para a malta. Uma cacofonia explodia em meu espírito; e uma explosão (lembrem-se) é uma passagem rápida de um sólido ou líquido para o estado gasoso, ganhando um volume centenas de vezes maior que o original em menos de um segundo.
Aquelas francesas estavam bem maquiadas, sorridentes e decididas, bem jeito de matriarcado americano, por sinal. Tinham ainda (ironicamente) um olhar de democracia burguesa misturada com Peyrefitte, como uma caixa de ressonância para um bloco político impossível: admiração pelo Estado forte, Perfomance, Condenações doutrinárias na ponta da língua. ----- Esse ponto de vista (disse Clarie) pode ser defendido também fora daqui. Estar no Mercado do Porco não muda nada. Talvez apenas meu humor. E seria melhor aliviarmo-nos antes da longa viagem que temos pela frente (.) -----, , acelerando de leve e saindo da garagem ao lado em marcha ré, um caminhão estacionou junto ao meio fio com o motor em ponto morto. Clarie e Emmanuelle nos olharam de soslaio, um olhar vindo do interior do Socialismo Liberal. ----- Na França (disse ela) debatemos sobre burocracia, luta de classes, mundos patronais, sindicatos reformistas, alta administração, baixo clero, finanças, jornalismo de mercado, instante pregnante de Lessing e intelectuais no poder, livre-comércio e União Européia, Referendo Italiano e atlantismo , guerras humanitárias e jihadismo. Os militantes franceses, está claro, só querem rir. Neles , há ainda grande reserva de sensibilidade, atenção e jovialidade após o achatamento ideológico de 1980. Sofremos hoje de uma grande expectativa de talentos que sempre nos rende boas comédias, enquanto não chegam, Mas ocorre-nos atualmente um abacaxi político que, está claro, vai nos deixar sem emprego durante muito tempo (.) -----
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