CENA II
FAUSTO, e MEFISTÓFELES, que, dissipada a névoa, sai de trás do fogão, em trajo de
estudante em jornada.
MEFISTÓFELES
Que berreiro, Senhor! às suas ordens.
FAUSTO
O recheio do cão cifrou-se nisto!
Um viandante escolar! faz rir, faz.
MEFISTÓFELES
Salve,
luzeiro do saber! Fez-me, confesso,
suar a bom suar.
FAUSTO
Como te chamas?
MEFISTÓFELES
Ridícula pergunta para um sábio
que timbra tanto em desprezar palavras,
não pode ver sem tédio as aparências,
e só aspira ao âmago das coisas.
FAUSTO
Dos entes como tu saber-se o nome
(Blasfemo, Tentador, Pai da Mentira)
é para logo conhecer-lhe as manhas.
Quem és pois?
MEFISTÓFELES
Quem eu sou? Parte da força,
que, empenhada no mal, o bem promove.
FAUSTO
Não te percebo o enigma.
MEFISTÓFELES
Sou o espírito
que estorva sempre. E com razão, pois tudo
quanto nasceu merece aniquilado;
portanto era melhor não ter nascido.
Meu elemento é o que chamais vós outros
Destruição, Pecado, o Mal, em suma.
FAUSTO
Dizes que és parte, e eu vejo-te completo!
MEFISTÓFELES
Falo verdade chã. Retro bazófias!
Cada homem (microcosmo de loucuras)
imagina-se um todo; e eu sou, confesso,
parte da parte que era tudo in ovo;
parte da treva, mãe da luz, sim dessa
vaidosa luz, que à sua mãe pleiteia
foros de universal; por mais que o tente
não lhos há-de usurpar; quem lhe deu posses
para mais que abraçar as superfícies?
penetra num só corpo? (e inumeráveis
são eles) só os tinge e aformosenta;
e o mais pequeno em seu correr a embarga.
Deixál-a; tenho fé que cedo acabe;
se perece a matéria, está perdida.
FAUSTO
Já sei o que és, e qual teu nobre empenho.
Como não podes destruir o todo,
pões-te a tomar desforra em ninharias.
MEFISTÓFELES
Consigo pouco, é certo. O oposto ao Nada,
o Que quer que é que existe, o mundo bronco,
por mais que em vulnerá-lo me desvele,
fica-me sempre ileso. Em vão lhe arrojo
ondas, procelas, fogos, terremotos;
ao cabo, terra e mar ficam serenos.
Pois a relé nojosa, a corja humana!
Não há meter-lhe dente. Ando, há que tempos,
a matar neles, sem parar na faina,
e a espécie a medrar sempre em sangue, em forças.
É para endoidecer! De ar, água, e terra,
do quente e frio, do húmido e do seco
mil germes brotam... Se não pilho o fogo,
ficava-me sem nada.
FAUSTO
E opões à força
eterno-activa, criadora, amante.
pobre demónio, o punho teu fechado!
Busca outro ofício, aborto vil de caos.
MEFISTÓFELES
Pensarei nisso, e falaremos. Posso
ir-me embora; pois não?
FAUSTO
Pedes-me vénia!
Não te percebo. És livre. Mas, agora
que já sei quem tu és, outorga franca
para me vires ver, quando quiseres.
Aí tens a janela, aqui a porta,
e além a chaminé, que se não fecha.
MEFISTÓFELES
Bom; mas para sair, força é dizê-lo,
acho um certo empecilho: e é ver pintado
no limiar um pé de feiticeira.
FAUSTO
Tens medo ao pentagrama! Essa é bonita!
E quando entraste, diabão do inferno,
emandingou-te acaso? Um génio desses
deixa-se assim lograr?
MEFISTÓFELES
Repare o sábio!
Aquele pentagrama está mal feito.
O ângulo que aponta para a rua
não fechou bem.
FAUSTO
Ditoso acaso. Temos
portanto que estás preso, e eu sou teu dono.
Foi o tal bico-aberto uma fortuna.
MEFISTÓFELES
O cão vinha a correr; não viu a coisa.
Agora é que reparo no busílis.
Não há sair; não há.
FAUSTO
Pela janela.
MEFISTÓFELES
É uma lei de espectros e demónios:
sai-se por onde se entra; à entrada livres,
forçados no sair.
FAUSTO
Regulamentos
até no inferno! Bravo! Então convosco
também, senhores meus, pode haver pactos?
MEFISTÓFELES
Mau é nós prometermos; que faltar-vos
nenhum de nós vos falta; é pagamento
rés-vés; nem meio chavo se lhe sisa.
... Essas explicações são contos largos;
ficam para outra vez. Agora, peço
co’a maior ânsia, deixe-me ir embora!
FAUSTO
Mais um instante: lê-me a buena-dicha!
MEFISTÓFELES
Basta de me emprazar. Solte-me e breve
há-de tornar-me a ver então prometo
satisfazer-lhe em cheio as veleidades.
FAUSTO
Não te armei laço algum. Se estás na rede,
foi por teu alvedrio. Asno me julgas
que havendo às mãos o demo, o lance a monte,
e que fique boca aberta a ver se torna?
MEFISTÓFELES
Mui bem. Se leva em gosto a convivência,
também eu; já não parto. O que lhe ponho
por condição, é que há-de permitir-me
entretê-lo tão só co’as minhas artes.
É nobre passatempo,
FAUSTO
Assino, pondo
por condição também, que essas tais artes
me possam divertir.
MEFISTÓFELES
Dou-lhe a certeza,
caro amigo e senhor. Vai regalar-se
numa só hora mais que em todo um ano
do seu viver monótono. Os cantares
que se hão-de ouvir a espíritos mimosos,
e as imagens formosas, sedutoras,
que esse coro gentil virá mostrando,
será tudo real, que não prestígios
de nenhuma arte oculta enganadora.
Haverá para o olfacto almas delícias.
Depois para o paladar tão finos gostos
como nunca os provou. Depois volúpias
até às fibras íntimas. À obra!
Tudo é prestes.
Espíritos potentes!
Podeis principiar. Eis-nos presentes.
FAUSTO.
J.W. GOETHE
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