quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Algo substancialmente radical nos destinos do discurso humano.

O romance é a expressão da consciência galileana da linguagem que rejeitou o absolutismo de uma língua só e única, o reconhecimento de sua língua como o único centro semântico-verbal do mundo ideológico, e que reconheceu a pluralidade das línguas nacionais e, principalmente, sociais , que tanto podem ser línguas da verdade , como também relativas, objetais e limitadas de grupos sociais, de profissões e de costumes. O romance pressupõe uma descentralização semântico-verbal do mundo ideológico , uma certa dispersão da consciência literária que perdeu o meio linguístico indiscutível e único do pensamento ideológico, que se encontra entre as línguas sociais nos limites de uma única linguagem e , entre as línguas nacionais , nos limites de uma única cultura (helenística, cristã , protestante ) de um mundo político-cultural .

Trata-se de algo substancialmente radical nos destinos do discurso humano : é a libertação fundamental das intenções semântico-culturais e expressivas do poder de uma lingua única e só e , consequentemente , trata-se também da perda da percepção da língua como um mito , como uma forma absoluta do pensamento . Para tanto, não basta uma única revelação do plurilinguismo do mundo cultural e das divergências da língua nacional própria ; é indispensável revelar a substancialidade desse fato e de todas as consequências que dele decorrem .

Para que se torne possível um jogo literariamente profundo com as línguas sociais , é indispensável  uma mudança radical da percepção da palavra num plano linguístico e literário  em geral. É preciso habituar-se à palavra enquanto fenômeno objetal, característico. mas ao mesmo tempo também intencional, é preciso aprender a perceber a ''forma interna'' de sua própria língua como se fosse de ''outrem'' ; é preciso aprender a perceber o aspecto objetal, típico, característico não ´só dos atos, dos gestos e das diversas palavras e expressões, mas também dos pontos de vista, das visões e percepções do mundo que estão organicamente unidas à linguagem que as exprime . Isto só é possível hoje em dia para uma consciência organicamente participante de um universo de línguas que se aclarem mutuamente. Para tanto é necessário a interseção sensível das línguas numa única consciência dada, que participe igualmente dessas várias línguas.

A Teoria do Romance
Questões de Literatura e Estética

Mikhail Bakhtin

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