Naquela manhã, o rosto pré-cirúrgico de Gisele emergiu num arco de luz incandescente cheio de ódio, e ela começou a despejar insultos sobre mim num tom gutural, horrendo e incomparável. O tal fenômeno de que falam as revistas. Mas, dessa vez, ela se foi. Ela se fôra e subitamente percebi que meu tempo na terra estava sendo cronometrado. ''Você ficou louco '', ela disse ''Vou cair fora daqui (!)''. O infortúnio me condenara, horas depois, à uma terrível dificuldade de falar sobre o caso. Ou talvez eu estivesse sendo protegido pelo além-túmulo; ou sendo guiado através dos perigos de Nova York. A primeira hora sozinho me deixou mais lembranças que as trinta mil precedentes. Eu simplesmente puxei o pau para fora, sem pronunciar palavra, e comecei a imaginar outra mulher. Quando concluí meu inventário, havia imaginado 80, e me masturbado durante horas seguidas sem derramar uma gota sequer de sêmen. Fantôme qu´à ce lieu son pur éclat assigne. Minhas posses estavam então todas acumuladas numa canto da minha mente. E com meu bastão de carne, meu osso, eu podia agora remexer em todas elas, trazê-las até mim e depois colocá-las de volta no lugar. Nus cromados de vinte metros de altura ensaboando-se sob duchas cintilantes. Minha cama ficava perto da janela e eu ficava voltado para ela a maior parte do tempo. Via os telhados, os prédios e o céu, e a rua também, se esticasse o pescoço. Naquele quarto, a fusão entre sujeito e objeto, homem e mundo, não podia ser fingida. Ali se passavam coisas estranhas comigo. Poderiam ser um trecho tirado do Finnegans Wake, operando entre Columbus Circle e a 72 nd Street durante as horas do rush. Provavelmente, as pessoas nas janelas do prédio vizinho me viam com a cabeça contra o vidro. ''Mas à noite não podem me ver'', eu pensava ''porque não acendo a luz . ' , pensava, fazendo um breve gesto de desdém: ''Le vierge, le vivace et le bel aujourd ´hui va-t-il nous déchirer avec un coup d´aile ivre '', recitava eu, quando queria me revigorar. Uma semana depois Gisele me escreveu dizendo que considerava minha situação um infortúnio, ou aquilo que os franceses chama de ''Les maladies galantes''. Respondi-a sucintamente, dizendo que a Poesia era o reino da insaciedade. Frigobar, cigarros, exercícios físicos, privada. Eis os pólos. Quando ela ainda estava aqui, tais coisas tinham outro significado. Gisele entrava no quarto, se azafamava ao meu redor, me informava das idiotices da Casa da Moeda, fazia minhas vontades, e dava tanto o cu quanto a buceta. Eis os antigos pólos. Mas me dava trabalho fazê-la entender isso como pólos. Agora, pensava que metade de tudo isso, ao menos, deveria ser obrigatoriamente imaginário, e mais adequado ao meu caso. O caso do homem fazendo propaganda para ser eleito. Muitas vezes eu me colocava na tela do computador, decidido a não gastar dinheiro com a campanha, pensando que faria um bem enorme à muita gente apenas ouvir-me falar sobre os arranjos que poderia promover na América. ''Mesmo que sejam só um bando de mulheres velhas'', eu pensava. ''Sim, chamemos isso de bondade, sem picuinhas''. Logo depois : ''Não , obrigado'', voltava atrás, calculando a proximidade entre a tela do computador e as partes sexuais daquelas pessoas. E com um quê de desprezo educado, eu começava a desvanecer novamente, como se minha vitalidade estivesse sendo sugada do meu corpo para se fundir com o ambiente leitoso e macilento do quarto. Não fugia de nenhuma pergunta, no entanto. Conversar comigo nas redes sociais era submeter-se à uma fluoroscopia psíquica. E quando eu dizia à minha militância que o tratamento que eu lhes dispensava era ''sintomático'', isso significava que não havia tratamento algum, que eu estava apenas conversando comigo mesmo, não com eles. Apenas meu rosto suspenso no meio da existência, inescrutável como o de um jogador. Tudo era possível, e sempre acabavam acreditando em mim. E com razão: ----- Quando o BCE compra títulos corporativos para estimular a economia européia, acaba forçando os investidores a virem buscar rendimentos maiores neste lado do Atlântico (.) Vejam os fluxos (.) -----, eu dizia, percebendo na audiência um frio na barriga, como quando um elevador pára de repente . Desse modo, eu ficava perto do eleitorado a cada pensamento meu. Não me perguntava se fazia aquilo por caridade ou por um sentimento menos geral de afeição. Não via nada à minha frente a não ser minhas mãos descarnadas e um pedaço de manga no prato. Ou nem isso, nem isso. Apenas me perguntando sempre se faltava acrescentar alguma coisa. Jamais inclinado à nostalgia, ignorante de todo o tédio do mundo. Meus braços estavam sempre cheios de força muscular, mas me dava trabalho dirigí-los. Minhas pernas eram másculas, mas o barulho do estrado era a única coisa que existia na minha vida. Eu pedia à Deus para que ele jamais cessasse ! Jamais diminuísse. Era de costas, ou melhor, virado, que eu era mais feliz e menos ossudo. A bochecha colada no travesseiro. A poeira cósmica nos olhos. Bastava abrir os olhos para recomeçar o céu e a fumaça da humanidade. Minha ambição era terrível e poderosa, mas ouvindo o trânsito lá embaixo, eu pensava que seria impossível conseguir um táxi.
K.M.
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