sábado, 17 de setembro de 2016

Vórtice negentrópico automonitorador espontâneo. 47

------ Quando escrevo K.M. (eu disse à Irene) é para compreender uma humanidade que até agora só conseguiu se afirmar pela destruição. Mas as garras do Angelus Novus , de Klee, e seus pés de ave de rapina, não tem um significado satânico. Antes caracterizam  o poder destrutivo , e ao mesmo tempo libertador, do anjo (.) No final do ensaio de Karl Krauss, é ele quem celebra a vitória sobre o Demônio ''no ponto em que origem e destruição se encontram '' (.) -----, eu disse. Irene pairava sobre minha cabeça num estado de vigilância total, mas era completamente natural em sua atitude, enquanto eu me mostrava intelectualmente ameaçador. Não era exatamente um sinal de saúde, mas de potência intelectual.Eu desmontava os assuntos de nossas conversas em seus componentes essenciais, enchendo sua mente com esfregadelas de trapos literários. Ela tinha um talento especial para dramatizar meus interrogatórios: ------  Autoparódia e exageros dramáticos. A personificação da independência espiritual. Do out-sider. Do brujo. Basta pensar um pouco, que começo a mordiscar os lábios de novo. Isso causa-me aflição (.) -------, ela disse. Ao primeiro repouso do meu pensamento, ao redor da mesa ou noutro lugar, Klara e Irene tinham suas respectivas formas de compreenderem a coisa. E se logo de saída não estivessem de acordo sobre o que tinham ouvido da minha boca e sua significação, apegavam-se à questão da ''cor'' em ''movimento''. Um artifício de cor mesclado às notícias. Muitas  vezes (eu admitia à elas) carrego um pouco a mão na tinta. Era verdade. Eu era mais Van Gogh que Rembrandt. Depois, elas falavam seriamente comigo até chegarmos à um acordo. Digo: até que estivessem de acordo comigo. Era, portanto, difícil para qualquer pessoa se esgueirar de mim, mesmo à sombra dos poemas mais estranhos que encontravam na minha mesa. Liam tudo que encontravam ali, com ou sem autorização.  E todas elas levantavam a cabeça,  a cada leitura,  interrogando-se , observando-se umas às outras, antes de se curvarem mais uma vez sobre os textos e... cada belo rosto inclinado passeando os olhos dentro de um sorriso que não eram bem sorrisos,  antes pequenos rictos, anti-climaxs pessoais momentâneos e elaborados, que, sem maldade, procuravam despojar o que liam de toda relevância. Cada uma delas, a despeito de suas ideologias políticas, se perguntava se as outras sentiam a mesma coisa e  prometiam a si mesmas informaram-se mais profundamente sobre o assunto. Eu não dava descanso à ninguém . Entrava na sala e viam-me afastando-me com indiferença à sombra dos meus papéis centenários, ora procurando ignorar ''Shakespeare'' e aceitar o vazio caduco do milênio, ora me refugiando na claridade elevada de papeís ainda mais antigos, andando pelos corredores com um andar incerto que, a cada passo, colocava os pilares da sociedade em cheque. Meu semblante sério e sem expressão locupletando-se de orgulho medieval de casta, fechando-se numa redoma de meditação super-sônica para pensar melhor, observar melhor meu próprio sonho. ------ Por que a VOZ que me manda avançar (dizia à elas) parece não se calar nunca (.) -------, eu disse. Nesses momentos, eu sempre olhava fixamente para alguma delas, mas sem ver sua beleza, nem sua utilidade prática, apenas a pequena flor silvestre de mil cores sutis no centro de suas testas. Olhava-as com uma obstinação palpável, que conferia à minha pessoa uma plenitude indestrutível. E isso apesar de todas as podas radicais da mídia e da oposição.  ----- Às vezes  (eu disse à ela) sou realmente falastrão.  Pretendo dar todas as respostas à todas as perguntas, e deixar um ponto de interrogação todo meu boiando no ar, para que continuem esperando por mim no final do dia... Digo: os barulhos da vez (.) De modo que parece à todos que recobrei os ouvidos da infância. Então, na minha cama, no escuro, nas noites de tempestades, eu disparo a glândula pineal e identifico a influência política venenosa em todos os assuntos, no estrépido de todas as ambições lá fora, nas falhas, omissões, cortejos, tapinhas no ombro, nos gargalos de todas as disputas intelectuais, nos troncos gementes de todas as idéias alheias, em toda grana envolvida em cada motivo de briga.
K.M.

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