NYC. Pela porta de ferro trabalhado do meu escritório, saí do pequeno edifício na direção Leste, passando pela Quaker Meeting House, deixando para trás construções em pedra de arenito envoltas pelo arboredo. Sentia, então, uma verdadeira paixão pela suspeita ao comprar os jornais do dia; e ficara irritado quando, folheando-os, minha contagem das cifras oficiais mostrou-se idêntica à do governo; minha paranóia, quando não podia ser confirmada imediatamente, tornava-se difícil de ser suportada. Defendia-me vagando entre latas de lixo presas por correntes, cachorros de rua, senhoras aposentadas e homossexuais enrustidos, traficantes e tiras. Na minha cabeça, as réplicas engenhosas das notícias ainda faziam referência a eventos futuros, pois eu era um Mestre na humilhação de efeito retardado, oferecendo atenção incessante à batalha diária de lama, poeira , barulho e cinzas da cidade. Todas as minhas personalidades subsidiárias vinham ocupando cargos de consultoria no Programa Liquefacionário da Realidade com honorários elevadíssimos. Meu disfarce preferido era o de play boy internacional, pregador de peças oferecido em sacrifício, enchendo as piscinas dos hotéis caros do mundo de piranhas e Ladys Sutton-Smith falsificadas, e misturando iagê, haxixe e ioimbina nos ponches servidos em recepções nas embaixadas americanas. Nessas ocasiões é que eu me inteirava das críticas cada vez mais intensas ao neoliberalismo e à austeridade na Europa e na América; e do elogio velado (Zut Alors) da Rússia, da China e da Índia. Mais de uma vez identifiquei paisanos da Sociedade Antifluoreto de Cincinnati tentando dissimular o ''business plan'' devastador de suas propostas entre os inimigos do cipó sulamericano que transformava a gengiva humana em pasta de dente. Meu olhar era tão maligno e cheio de desdém que muitos negociantes, ao receber tal impacto demolidor, faziam um esforço convulsivo para cair em minhas boas graças. Falavam-me, então, de elaborar um projeto nacional de desenvolvimento autônomo e soberano, inteiramente sustentável, como aquele a que ''aspirava a Rússia''. Logo em seguida convidavam-me para navegar em seus iates: fedor de sêmen e bucetas e suor e odor bolorento de retos sendo penetrados; diamantes e casacos de pele, vestidos de gala, orquídeas, fraques e roupas de baixo forrando o assoalho da embarcação, coberto por uma massa inquieta, enlouquecida e ondulante de corpos nus. ''Era assim '', dizia eu à Gisele, de volta para casa, ''... que os think tanks do liberalismo ampliavam sua influência corporativa na América, produzindo e difundindo informações estratégicas para agendas corporativas de doadores, conectados à todo tipo de lobistas por cima da ''haute cuisine'' dos eventos com executivos e políticos''. Gisele gostava de ouvir as histórias do Programa Liquefacionário. Ela sempre desenvolvia alguma coisa de Marguerite Duras enquanto eu estava fora; cuidava da casa e participava de suas atividades políticas; lia poemas e jornais, cada vez mais ''folle vivace ''. Eu gostava demais dela, amava-a. Sentia pena dela por não conseguirmos realizar uma convivência mais perfeita. Quando chegava de viagem, ficava de olhos fixos nela durante um longo tempo, na privacidade da sala de estar, olhos arregalados, ansioso para compartilhar as histórias e pensamentos secretos de minha atividade liquefacionária pelo mundo. ------ Você não acreditaria (disse à ela) como fiz trinta gourmets de um foro econômico pararem de mastigar ao mesmo tempo, ao apontar o nome de um oficial do governo num documento. Até mesmo a queda de um suflê fora ouvida no restaurante. O sommelier, rosnando ameaçadoramente para mim, deixou quebrar uma garrafa de champagne brut (safra 1926) no chaão; e P., um emissário do comitê disfarçado de maitre, voltou da cozinha do hotel com uma faca japonesa de desossar. ''Linchem-no (!)'', gritou ele, achando que erao FBI. Mas quando me vi acuado, lancei mão do meu maior trunfo: A Rússia (! ) O Plano Quinquenal para a retomada do desenvolvimento econômico. Disse-lhes que jamais sairiam do atoleiro com a ''expertise'' da soberba, da luxúria e da preguiça que transformava milhões em bilhões da noite para o dia, reabilitando a avareza como mãe da economia política, e que logo estariam servindo para aquela clientela suspeita suprême de boeuf de placenta cozido em óleo de motor drenado com doce de queijo limburguer curado em urina de diabéticos. (.) -----, concluí. Era assim que, nos olhos de Gisele, e particularmente nas veias do seu delicado pescoço, tão vulnerável, nas suas glândulas visíveis e veias azuis translúcidas, a lenda atribuída a mim pelo establishment, de um vampiro psíquico excêntrico e divertido, ia crescendo. Meu legado necessariamente subliminar tinha que toca-la com um temor de julgamento, pois eu me movia em terreno movediço e imprevisível enquanto seu corpo era percorrido pelos dedos da minha imaginação. Elaria e dizia: ----- Se os meus peitos não forem suficientes, posso mostrar a buceta (.) ------, e aquilo, além de formoso e engraçado, era também uma forma de bravura. Logo, o perfil da minha calça tornava-se bem delineado , a protuberância orgulhosa na altura do meu zíper pronta para falar por si mesma. Testemonium tomando uma forma curiosa: meus elementos combináveis eram mesmo as palavras, dispondo-as bem e adaptando-as bem, em blocos prismáticos de inter-textualidade. Um tecido verbal sedoso enchendo todo o céu da Visão. Às vezes, Gisele se perguntava se isso não era o que os místicos tibetanos queriam dizer ao avistar um mandala de Maitreya. Ela costumava pensar que minhas sugestões, sempre poderosamente hipnóticas, teriam sido implantadas nela por uma associação de idéias liquefacionária do tipo ''asiático''. Então ela começava a falar de modo elegante, enquanto eu passava as mãos nas suas costas: ----- Fantástico (!) Monstruoso (!) Estou realmente me sentindo no Céu (!) -----, palavras feitas de algum material reativo e obsceno, de tão flexíveis. Pois não importava o quão britanizado, afrancesado ou romanizado eu voltasse de minhas viagens, nunca deixava de ser também ''terrivelmente asiático'', dotado de alguma forma tibetana de vida oculta própria. ----- A Zona Psíquica Tibetana (expliquei a ela) é a mais obscura de todas, obscura e impenetrável. Nela, circulam todo tipo de agentes duplos, e como numa elite seletíssima, ninguém pode ser considerado neutro. Todos tem a finura de velhos dirigentes do Partido Comunista Chinês, o fascinante estereótipo do Dragão, do tempo da luta unida contra os japoneses. Um agente neutro do meu quilate é obviamente algo impensável, uma aberração perigosa até de se imaginar. Meu sorriso desarmante é visto ali, no máximo, como o de um emissário americano disfarçado de palhaço de ficção científica. Jamais como um Liquefacionário. O Departamento de Imunização Contra Choques Externos e Influência Estrangeira do Governo Chinês tem, inclusive, uma fotografia minha em seus arquivos, mostrando um rapaz de rosto embalsamado, como se alguém tivesse injetado parafina debaixo de minha pele macia, brilhante e desprovida de poros. Nela, um de meus olhos revela-se opaco e macilento, redondo e cego como uma bola de gude, com manchas e uma certa aparência soviética. Mas o outro é visivelmente inquietante, negro e luminoso, um olho arcaico, malicioso, de inseto tibetano no controle de um sonho. Minha aparência física é considerada, pelo Governo, sinistra e enigmática, mas meus contos e maneirismos literários permanecem incompreensíveis para eles, como os de um agente secreto de um Estado Embrionário inclassificável. Nolle Prosequit.
K.M.
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