segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Vórtice negentrópico automonitorador espontâneo. 29

Gisele havia me odiado pelos meus atos em Veneza,  mas descobriu simultaneamente que seu ódio era de um tipo traiçoeiro, pois parecia aumentar seu desejo. Assim que, naquela noite, ela decidiu me seguir em pessoa até o iate do Comitê. Toda nossa vida boa, de um momento para o outro, parecia ter-se transformado em gelo naquela noite, e ela não se sentia mais casada comigo. No ambiente humano do iate, como todos os outros, dentro das particularidades da vida política, eu era também humano, e voltava, aos poucos, à meu arsenal de baixezas machistas irrelevantes e encanto animalesco. Assim, era um consenso entre os nossos que carecíamos, por exemplo,  de meios legais para pressionar a China em relação ao excesso da capacidade na produção de aço, que vinha solapando o mercado global e derrubando as taxas de crescimento no mundo inteiro. Naquela noite, nos sentíamos tão humanos que não sabíamos mais nem como enfrentarmos nosso próprio e enferrujado eu (ergot) que fazia tantas promessas que não podíamos cumprir  (inclusive à Gisele). Ainda assim, eu estava sempre presente em seu raciocínio, onde eu aparecia sempre nu, na cama, tentando apresentar à ela certas ''especialités de la maison''. Ela não falava francês, mas sabia tudo o que precisava para entender as poucas palavras da noite passada: ----- Essuyeuse on le sait des opprobres subis, dont le vol selon le reverbére découche (.) -----, famoso ''tombeaux'' de Mallarmé: ----- Poema ingrato (expliquei-lhe então) Cheio de alusões e imagens incoerentes cuja tradução é impossível (.) -----, eu disse.  ------ Você vai longe demais para o meu gosto. Sempre acaba pedante (.) -----, ela disse. ----- What you gonna do when the ''poéme'' goes dry (?) -----, provoquei mais. Para cima ou para baixo, a verdadeira autoridade para mim era ela, mesmo quando a cerveja da tarde se diluía numa nuvem amarga, e eu só conseguia pensar em fazer flexões, como um presidiário. -----Gonna sit right there and wacht those the poet die (.) -----, respondeu-me ela, aparentemente a par da canção de Big Bill Broonzy. No espelho da minha memória, ainda aquele ''formato loco''. Dentro do odor do iate o mar afundando inteiramente meus olhos a fim de manter-me concentrado em obter consideração da Europa para o meu relatório de atividades liquefacionárias. Pois eu desejava, por Deus, assumir logo a Presidência dos Estados Unidos e ficar livre dos liames do comum e do finito, tal e qual uma alma poderosamente liberada da natureza das impressões midiáticas e da vida diária. Pro hac vice. Daí, meu prazer em ter hasteado minha bandeira portátil da Republica de Fiume no mastro do iate, com os dizeres bordados em francês: ''POPULARISER - DÉPOPULARISER ''. ----- Devemos confiar neles, mas não inteiramente (disse o Maia) Não sei porque, masa humanidade como um todo talvez tenha uma certa aversão aos nossos estudos de segredos governamentais. Tal aversão não se justifica, pois trata-se de iniciativa mil vezes mais responsável que a abjeta gratuidade dos Wikileaks  da vida. Além do mais, que forma de Revolução ainda é pensável na França além da Frente Nacional (?) Na França, onde os truques da linguagem política são tão específicos, nunca ficando exatamente claro quem está traindo quem, ainda que todos estejam por dentro das coisas (.) -----, ele disse. O Maia jactava-se de ter morado em Paris na juventude, onde os bordéis lhe ensinaram ''mais em uma semana do que no resto da vida''. Pensando bem, também eu, no meu período parisiense, havia recebido belas surpresas molhadas entre uma e outra garrafa de vinho. Nas ilhas britânicas eu só bebia Porto, Lisboa e Madeira, mas os vinhos franceses eram muito melhores.  O ''meretrício '' não estava exatamente expresso naquelas minhas lembranças, mas, de forma elíptica, era sempre assinalado nos meus poemas da época como algo ''muito parecido''.  ''Se os postes estavam iluminando as ruas de Paris '', eu pensava ''Era inevitável que também iluminassem aquelas garotas ''. A menção à Baudelaire era óbvia também em Mallarmé: ''De poste em poste ''. Assim sendo, aquelas manchas que se encontravam no interior dos meus poemas sempre pontilhavam de reflexos a substância insultuosa do desejo que eu procurava e que me circundava. A sombra dos meus nervos, não importava o lugar, sempre projetava suas listras, como a água na areia, instalando conexões desejantes no meu cérebro.  ----- Existência, natureza e lugar do Poder. Esse problema é clássico (observou o Maia) e aplicado à História, produz uma ''fantasmática '' marxista '' indigesta. Facções, cabalas e calúnias históricas falsas; e outras ainda, todas inúteis, se repetidas como um mero devir de vitrines ideológicas (.) -----, as palavras do Maia geralmente eram como um encontro do Espírito desinteressado com as necessidade biológicas causadas pelo destino, uma luta permanente e vã da criatura insidiosa que persiste contra ''Les corps des negóciants''. Perto das dele, minhas palavras triviais custavam-me caro. Ao menos U$ 5 milhões em agosto. Então, eu disse: ----- Certamente,  nosso eletroencefalograma do controle mundial envolve movimentações financeiras em larga escala, zonas de livre- comércio, deslocamentos físicos e reconversões fictícias, cyber-espionagem e detalhamento de processo mentais, cardápios de reações emocionais de líderes e parapsicologia aplicada à experimentos de guerra, sufismo e impressões sensoriais aparentes, além do uso de transdução eletromagnética de sinais bioelétricos injetados no sistema nervoso dos Bancos Centrais (.) Parte do mais recente palavrório inglês sobre isso revelou-se, surpreendentemente, um sistema de morfologia europeizado e virilizado pela disciplina germânica, sem nenhuma relação com o Corpus Chinês de protecionismo e controle de dados.  Não obstante a novidade, o yuan voltou a recuar (a yoga cambial de sempre) alcançando o valor mais baixo dos últimos cinco anos em relação ao dólar. Os ataques cybernéticos e o trânsito descontrolado de agentes secretos na economia americana estão azedando qualquer possibilidade de contato amistoso entre o imperador Amarelo e o Tio Sam. As restrições regulatórias ao mercado chinês estão recarregando as suspeitas de uma Super-Entidade econômica parasitária e sem emoções próprias, desprovida de qualquer finalidade prática além da obtenção de mais e mais controle, avançando através de aquisições e investimentos internacionais subsidiados em um nível sem precedentes na história da escassez humana (.) -----, eu disse. Meu problema é que eu sempre ia longe demais. Mas, ao invés de me repreender, o Maia procurou ser irônico: ------ Nada mais do que uma maravilhosa oportunidade de negócios (risos) Tão certeira, tão congruente com a Revolução Cultural , com a primavera, o ideograma, os arroziais, o Tao-te King, a Morte, as mandalas budistas, os gases venenosos escapando dos esgotos nos bairros industriais, a poluição das metrópoles chinesas parecendo  perfumadas nas reportagens de turismo empresarial, com a doçura dos lisases em flor previstas em cláusulas contratuais melífluas.  Felicidade oriunda do Yang-Tsé (!)  ; do elogio rasgado ao Imperador Amarelo; da educação negativa; do Céu cinza; Lao -Tsé contemporâneo de Heráclito de Éfeso; Felicidade e alegria mística (!) -----, obviamente, o Maia era limitado por seu isolamento radical. Foi justamente naquele momento que Gisele fez sua assustadora aparição. A poeira foi baixando pelo ar parado do iate imenso e quase vazio (cheiro de ferro quente e vapor químico); um radiador cantando ao fundo... o último palestrante da noite remexeu suas anotações e soprou para limpar a poeira de seus papéis, e então Gisele berrou: ------ Há uma antiga anedota veneziana que fala de uma ponte . Alguns marinheiros venezianos saem para velejar pelo mundo das idéias e acabam todos virando viados, chegando a enrabar até mesmo o grumete. Quando voltam para Veneza, decide-se que as mulheres devem cruzar uma ponte, com tudo à mostra, em uma tentativa de atiçar o desejo desses cidadãos de reputação duvidosa (...) -----, ela disse, e arrancou sua blusa com um puxão, deixando seus belos  seios à mostra. Ela fôra mais pérfida do que eu imaginava. Revoltado e humilhado, tomei posição no leme e fiz o iate avançar pelos canais de Veneza à uma louca velocidade, emborcando gôndolas repletas de turistas pacíficos e deslumbrados, passando rente aos motoscafi, ziguezagueando de um lado a outro do canal (as ondas varrendo as calçadas,  encharcando os passantes) e destroçando uma frota de gôndolas até finalmente chocar-se contra um píer e ficar rodopiando no meio do canal... Uma coluna de água de dois metros esguichou no ar a partir de um rombo enorme no casco. Àquela altura, Gisele já não rosnava nem mordia. Apenas cobria os seios com as mãos, sozinha e apavorada na cabine. ''Specialités de la maison (!) '', disse à ela, descendo do iate direto para o carro dos carabinieri.  ------ Cuide das bombas hidráulicas danificadas (.) -----, ordenei ao Maia.  ----- Abandonar navio. Cada um por si (.) -----,concluí. Quando cheguei no hotel, de madrugada, após pagar U$ 200.000 de fiança, eu não estava de bom humor.  Por um momento, Gisele chegou a perder a respiração.  ----- Você está bem (?) -----, perguntou-me ela, quando deitei ao seu lado na cama. Ela respirava com um tom tão rascante quanto o último suspiro de um órgão cloacal.  ------ A travers ler lueurs que tourmente le vent (... -----, sussurrei no ouvidos dela antes de dormir.
K.M.

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