Rogério José Schuck*
Derli Juliano Neuenfeldt**
O termo "Spielverderber" comumente é traduzido do alemão para o português como "desmancha-prazeres". Talvez aqui ele deveria assumir mais o sentido de "in Unordnung bringen", ou seja, é uma espécie de tentativa de acabar com o "existente aí", ou não se enquadrar nas regras. "Verderben" possui um sentido de arruinar; estragar. Nesse sentido, pode-se dizer que tal já "pré-supõe" o que "está-aí" à disposição.
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“Em todas as caprichosas invenções da mitologia, há um espírito fantasista que joga no extremo limite entre a brincadeira e a seriedade” (Johan Huizinga).
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Como a realidade do dia-a-dia como tal não é possível ser tomada, na ludoterapia o jogo providencia tal espaço. Exige-se do jogador, por outro lado, um determinado comportamento conforme as regras do jogo. Ao se entregar ao jogo, abre-se um espaço que não é aquele no qual o paciente se encontra sob os condicionamentos do dia-a-dia. Ali, ele pode entregar-se à situação e experimentar outro tipo de possibilidade de comportamento, sem ser ameaçado pelas conseqüências.
Ao que se percebe, no jogo possibilita-se uma quebra da hierarquia estabelecida pelos condicionamentos do dia-a-dia. Parece que ele desempenha um papel de auto-atração. Lança sobre nós um feitiço, tornando-se fascinante, cativante, impossibilitando o domínio por parte de alguém. Ele tem existência própria, uma "natureza própria", ou seja, "o sujeito do jogo não são os jogadores, porém o jogo, através dos que jogam, simplesmente ganha representação" (Gadamer, op. cit, p. 145) . Nele toda postura dominadora fica de lado. Percebemos assim que, nesse sentido, a hermenêutica em última instância se tornará uma crítica radical à tradição da racionalidade. O jogo exerce um fascínio sobre nós e, aparentemente, também nos submete não se sabe a quem.
O próprio jogo assume o lugar antes dominado pela subjetividade. Porém, para ser jogado, ele sempre exige a participação dos parceiros que o executam, os quais não conseguem se desconectar de sua subjetividade. A subjetividade nunca desaparece, mas permanece como que em concordância com as regras do jogo e ajudando "algo" até então desconhecido a se desabrochar em si mesmo no jogador. O movimento, o vai-vem pertence tão essencialmente ao jogo que, em último sentido, faz com que de forma alguma haja um jogar-para-si-somente. É necessário e condição, para que seja um jogo, que haja alguém ou algo com o qual o jogador jogue, de modo a ele ter um contra-lance ao lance dado, mesmo que não seja tal uma pessoa.
É na possibilidade de o jogador se colocar a si mesmo em risco que repousa um dos aspectos fascinantes que torna o jogo cativante. Posso auto-experimentar a mim mesmo no jogo, ele me dá a possibilidade de um comportamento que normalmente não devo ter. Assim podemos afirmar que ao jogar se experimentam diferentes papéis sociais. De certo modo, é um processo reflexivo, mas não no sentido teórico nem epistemológico. É como experimentar a participação numa "quase-reflexividade" ontológica, talvez podendo ser mais bem compreendida com o conceito "pró-flexão" 4.
Essa "pró-flexão" se torna possível, na medida em que o indivíduo se entrega ao próprio espaço do jogo. É ali que ele poderá fazer tal experiência enquanto experimentação de si mesmo, sem ser perturbado pelos condicionamentos do dia-a-dia. É aquela idéia de que algo, enquanto algo se revela, adquire sentido, à proporção que seu sentido é, por assim dizer, de certo modo compreendido por aquele que está fazendo a experiência.
A mesma estrutura encontramos na analogia da ficcionalidade interna da obra de arte. Percebe-se aí uma certa experiência da produção de um espaço próprio da obra de arte, onde "o sujeito da experiência da arte, o que fica e persevera, não é a subjetividade de quem a experimenta, mas a própria obra de arte" (Ibid., p. 145). Enquanto tal, é marcada uma diferença clara do nosso acesso direto à obra, via reflexão, e o acesso direto, via ontologia5.
O jogo deveria lançar uma luz para a própria experiência estética. O modo de ser da obra de arte é intimamente vinculado ao seu ser experimentado, no sentido de experienciado, e não à análise do modo objetivo. Nessa linha de raciocínio, Gadamer dirá que o jogo independe da consciência dos jogadores, possuindo uma essência própria que destrona a pretensão absoluta da subjetividade. Segundo ele, “também há jogo, e inclusive só o há verdadeiramente, quando nenhum 'ser-para-si' da subjetividade limita o horizonte temático e quando não existem sujeitos que se comportam ludicamente” (Ibid., p.145).
O jogo marca um horizonte para além daquele dos participantes. Apesar de o jogo acontecer, devido à participação ativa dos seus envolvidos, o ato de jogar não deve ser entendido como um mero desempenho de uma atividade. Conforme Gadamer, "lingüisticamente o verdadeiro sujeito do jogo não é com toda evidência a subjetividade de quem, entre outras atividades, desempenha também a de jogar; o sujeito é muito mais o jogo mesmo" (Ibid., p.147) .
É através dos jogadores que o jogo simplesmente ganha sua representação. No jogar "o movimento que nestas expressões recebe o nome de jogo não tem um objetivo ao qual desemboque, senão que se renova em constante repetição". Portanto, "é o jogo que é jogado ou desenvolvido; não há aqui nenhum sujeito que seja o que jogue. É o jogo a pura realização do movimento" (Cf. ibid., p.146). É, pois, o próprio jogo que mantém o jogador a caminho, que o enreda no jogo. Na seqüência podemos aproximar a discussão com a questão do processo de compreensão.
Notas
O termo "Spielverderber" comumente é traduzido do alemão para o português como "desmancha-prazeres". Talvez aqui ele deveria assumir mais o sentido de "in Unordnung bringen", ou seja, é uma espécie de tentativa de acabar com o "existente aí", ou não se enquadrar nas regras. "Verderben" possui um sentido de arruinar; estragar. Nesse sentido, pode-se dizer que tal já "pré-supõe" o que "está-aí" à disposição.
A esse respeito, Huizinga (2004) concebe a essência do jogo numa categoria primária da vida. Em sua obra Homo Ludens, destaca que tal essência se situa no divertimento. Em alemão usam-se dois termos para exprimir esse conceito: Spass e Witz. No divertimento, importa entrar nesse outro espaço, sem a preocupação de saber o que se sabe nisso. Nesse sentido, as regras do jogo são fundamentais, a fim de proporcionar uma total entrega, por parte dos parceiros do jogo.
Ocultamento não tem aqui o sentido de esconder, mas como algo ao qual os participantes não têm acesso.
Trata-se de uma estrutura com um potencial implícito, em favor de uma possível abertura, e não em favor de uma delimitação, de uma restrição. É o encontro com algo que eu ainda não conhecia. Pode-se inclusive falar num experimentar de algo, depois do qual o sujeito encontra-se noutro lugar em que não domina o processo no qual está sendo deslocado pelo outro.
Não é nosso intento entrar na discussão sobre a obra de arte. Apenas registramos aqui o fato de que a reflexão sobre o jogo pode ser muito válida para a análise da própria obra de arte. Com isso, não descartamos que o contrário também seja igualmente possível. Fica, pois, essa questão registrada mais sob a forma de tese; o leitor poderá encontrar, na obra de Gadamer, uma vasta reflexão a esse respeito.
Evitamos aqui o termo "núcleo duro", a fim de não criar confusão com outros autores que trabalham esse termo noutra perspectiva.
Referências bibliográficas
CORETH, Emerich. Questões Fundamentais de Hermenêutica. São Paulo: EPU, Ed. Da Universidade de S.P., 1973.
GADAMER, Hans-Georg. Verdad y Método I: Fundamentos de una hermenéutica filosófica. Salamanca: Ed. Sígueme, 1996.
_______. Verdad y Método II. Salamanca: Ed. Sígueme, 1994.
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Vol 1. Petrópolis: Vozes, 1995.
_______. Ser e Tempo. Vol 2. Petrópolis: Vozes, 1995.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. 5 e. São Paulo: Perspectiva, 2004.
PALMER, Richard E. "Crítica de Gadamer à Estética Moderna e à Consciência Histórica". IN.: Hermenêutica. Lisboa: Ed.70, 1989.
STEIN, E. A Caminho de uma Fundamentação Pós-metafísica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997.
_____. Aproximações sobre Hermenêutica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.
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