terça-feira, 13 de setembro de 2016

Vórtice negentrópico automonitorador espontâneo. 37

A partir de um dado qualquer colhido nos jornais meu cérebro e o de Ligget começavam a labutar em uníssono. Aquilo não era (no entanto) uma conversa propriamente dita : ela tinha sempre um arsenal de palavras precisas na ponta da língua, que podiam destroçar qualquer argumentação, mas usava-as mais como um chefe de locomotiva usa sua lanterna, e nem sempre se contentava em contemplar a dança do ventre das baratas sufocadas pela poeira amarela do escritório. Sabia que estava votada à um trabalho conservador, e sempre acendia um cigarro antes de vasculhar seus papéis : ----- Atomizar a escrita e cobrir de anfetamina o oral (.) E ainda chamo isso de ''jogar'', apesar de tantas precauções. Sou incapaz de mentir (.) ------, ela disse. Ligget tinha ''élegance'', e não sei se usaria essa palavra para muita coisa neste mundo. Tinha uma dúzia de observações como essa para animar uma centena de manhãs de conversa fiada. Eu me sentia acomodado dentro de sua solidão, na qual reconhecia um bicho pego numa armadilha, vivendo num passado inalterável e imperfectível. Sua vida fora do meu escritório parecia-me um país remoto e de difícil acesso. ----- Não há retorno, Ligget.  Confinados nesse escritório todas as manhãs, quase entre as nuvens, percebemos na distância um mundo que se dilata para nos deixar passar (.) -----, eu disse. Ligget acendeu seu cigarro e vasculhou comicamente sua escrivaninha. Às vezes, eu falava num dialeto tão complexo que só nós dois podíamos entendê-lo, e cada um vivia negando a autoridade do outro. ----- Amadores sempre se esforçam muito para nos olhar dentro dos olhos. É a marca do amadorismo. Há coisas sobre mim que você não compreende, Mr. K. Mas são insignificantes, no momento. Só temos que continuar. Essa última viagem, ao Colorado, proveu seus últimos escritos de muitas imagens exóticas, mas seu personagem ainda está preso num ritmo baudelaireano. Agora, esgotadas as meiguices e ''mea culpas'', quero que avance com a palmatória em punho. Qualquer coisa escrita ou datilografada, sacou ? Não importa. Ainda que permanecendo humana e viva, sua língua mora em si mesma. Na Ciência da Lógica , Hegel diz que o automovimento da Idéia Absoluta , como palavra originária, é um proferimento imediatamente dissipado. Nietzsche, por sua vez, costumava dizer que ''poder rir'' ao ver as naturezas trágicas soçobrarem, é ''divino''. Algo que combina com sua mania de dar socos no ar antes de escrever alguma coisa. Só para quebrar o gelo (.) -----, ela disse. Ligget era um anjo, mas me enfurecia. Eu lutava para não me apaixonar por ela. Se as formigas da minha equipe de campanha eram como abelhas que tinham uma rainha, Ligget era a rainha das abelhas. Ela fazia minha pele formigar, minha virilha arder e meu coração badalar dentro do peito. Tudo isso enquanto eu dava socos no ar e ela me observava de dentro de sua ''zona de conforto'' intelectual. Naquela manhã, ela se via obrigada a pensar de que maneira eu poderia parecer adorável de noite, diante das câmeras. Ela própria estaria usando um vestido de seda preto, com uma gola branca ( o máximo de branco que ela se permitia enquanto ''anjo'' de alguém como eu). Aquilo certamente conferia legitimidade à minha dependência da angeologia em todos os planos da existência. ----- Mas quero o mínimo de sombra hoje (ela disse) Uma pequena sombra na história, em si, ali na hora, não é nada. Não se pensa muito nisso de antemão.  Continua-se numa claridade provisória até o meio do dia. Mas conheço sua relação com a Sombra, ela se acumula ao longo das horas, torna-se mais densa a partir do crepúsculo, depois de repente explode e afoga tudo . O Anjo é o absconditum que se absolve de seu encobrimento. Durante seu samadhi, a potência mental e o ato perdem sua opacidade e, por um instante, tornam-se transparentes. Isso equivale a dizer que eles se tornam realidade. O samadhi é um êxtase divino cuja forma, mental e humana, é completada a cada instante, perpetuamente em ato, enquanto dura. Ele não se desenrola no tempo; já a potência mental é o que domina a duração. Ela se desvanece no momento em que passa ao ato. O Anjo é, muitas vezes , a força que obriga a potência mental a permanecer em si mesma. É o que auxilia o tantrismo mágico na ópera da transmutação. É sobre essa força que repousa o poder. O isolamento da potência mental em relação ao ato, a organização da potência. Dedução curiosa: o poder espiritual só é aceitável enquanto tensão que obscuramente prenuncia um ato. Mas vou ser obrigada a deixar essa questão em suspenso, pois ela gera em você um indulgência incompreensível. 

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