sexta-feira, 17 de março de 2017

''A burocracia deve ser o algodão entre os cristais ''

Entre todos os que denunciavam a traição , incluindo o persistente Hayek, o Prêmio de Nobel de 1986, James Buchanan, tinha a primazia da crítica mais ácida e mais claramente hostil do que se convencionou chamar de ''era keynesiana '' . Buchanan afirmava enfaticamente  que talvez o problema mais importante que as democracias ocidentais enfrentariam seria a inclinação dos governos em trabalhar no ''vermelho'' , a gerar déficits em resposta a demandas de eleitores ou de grupos de interesses. Ele atribuiu essa inclinação ao déficit, essa facilidade revelada pelos governos no atendimento de tais demandas, ao desaparecimento de dois constrangimentos, fundamentais para a garantia da boa gestão  orçamentária, durante o período que antecedeu a Grande Depressão dos anos 30 . O primeiro deles é o padrão-ouro, que eliminava o recurso fácil à emissão monetária (printing press) para financiar déficits orçamentários. O segundo constrangimento era de ordem moral : a resistência vitoriana a descarregar sobre as gerações futuras os custos de uma dívida pública crescente . O impacto das duas guerras mundiais debilitou os laços intergeracionais e a ameaça de guerras atômicas a partir da Guerra Fria tornou o presente infinitamente  mais valioso para o ser humano que o futuro, o consumo mais valorizado do que a frugalidade e a previdência.  O que sobrou das linhas de defesa da boa gestão orçamentária foi destroçado pela ação emoliente dos ensinamentos de Keynes e seus discípulos..  O ''paradoxo da poupança '' tratou de exibir a falácia de composição implícita na tentativa de estender para o conjunto da economia as virtudes da frugalidade familiar . O conceito de dívida sem ônus desterrou na irrelevância política , por 40 anos , o temor clássico dessa forma de financiamento do déficit. As políticas de estabilização colocaram os desequilíbrios orçamentários no centro dos processos políticos. E não importa discutir aqui as soluções que Buchanan oferecia para impedir que o final do século fosse marcado pela tragédia orçamentária e pelo ominoso peso da dívida contraída pelas gerações passadas . O diagnóstico do fracasso da era keynesiana e dos prejuízos que causou à sociedade, este sim , é valioso porque assinala, de uma perspectiva rígida , a inconformidade com a ''democratização do capitalismo '', a nostalgia dos padrões liberais de gestão do Estado e das finanças públicas , ao mesmo tempo em que aponta o rastro dos problemas e desequilíbrios legados pelas políticas compensatórias e ativas dos governos intervencionistas. Não há quem possa negar que os problemas de financiamento e a perda da capacidade regulatória do Estado foram as marcas registradas da difícil conjuntura do final do século XX . E se muitos ''conservadores'' pretenderam e ainda pretendem enfrentar a questão ''reinventando o liberalismo ''  e ''renovando a fé na capacidade de auto-regulação do mercado '' , o que ainda há de progressista nos governantes atuais se contorce entre fórmulas antigas e o enorme peso dos interesses e demandas já constituídas institucionalmente dentro do Estado . Sabemos bem que mandatos presidenciais não são exatamente cartas brancas e que inúmeras galerias de interesses historicamente constituídos muitas vezes se apresentam abertamente como forças de resistência à qualquer iniciativa de mudança de paradigma político. Roberto Skidelsky ironiza o temor de Hayek de que a saúde da democracia pudesse ser afetada pela força excessiva do Estado. Muito ao contrário, diz Skidelsky, o Estado foi muito fraco para impedir a invasão , tornando-se dependente e submisso às ''forças externas '' que reduzem a capacidade de gestão econômica. ''Keynes superestimou a possibilidade de uma gestão racional pelos governos democráticos '' (idem ) .  O autor sugere que o esgotamento do padrão de intervenção estatal seja substituído por algo mais avançado do que o modelo keynesiano . Racionalidade econômica e práticas democráticas sempre foram o conflito de todo governo progressista. O problema é que tanto Buchanan quanto Skidelsky concebiam a relação Estado-economia como uma relação de ''exterioridade'' .  Esse vício metodológico é indissociável dos procedimentos de investigação da economia, na medida em que o objeto proposto à análise são as condições e propriedades de um sistema auto-regulável e movido por critérios de maximização das utilidades individuais, dadas as restrições orçamentárias de cada uma. Schumpeter, por exemplo , a despeito da complexidade e riqueza de ângulos de sua análise , não consegue ultrapassar a oposição entre democracia e racionalidade econômica capitalista. Sugere apenas uma forma de reduzir os efeitos da irracionalidade democrática sobre a lógica do mercado. ''A burocracia deve ser o algodão entre os cristais '', dizia ele. Na direção da polaridade ''racionalidade econômica - processos democráticos ''. As tentativas de superação de tal polaridade caminham quase sempre na direção de se preservar a racionalidade econômica  ---- definida a partir de seus fundamentos individualistas ------ restringindo a atuação dos processos democráticos.  A razão privada tende a tomar de assalto a esfera pública e a submeter seu comando a todas as decisões que buscam atender às demandas dos setores sub-representados da sociedade. Não há como discordar de Habermas quanto à ''indissolúvel '' tensão que atravessa permanentemente as relações entre capitalismo e democracia. Aos liberais parece possível reduzir o conflito através do encolhimento do tamanho do Estado e da redução de suas funções , despolitizando a economia . As correntes progressistas, acuadas pelo avanço ideológico e político das forças sociais que sustentam a ''reinvenção '' do liberalismo, ou neoliberalismo , tentam até hoje cavar suas trincheiras nas reformas do Estado e propostas orçamentárias. 




K.M.

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