segunda-feira, 27 de março de 2017

DIALÉTICA ENTRE ESTADO E CAPITAL


Depois de serem expulsos do centro das altas finanças , os genoveses criaram , em 1647 , sua própria Compagnia delle Indie Orientali e , num gesto elegante , presumivelmente no intuito de minimizar os custos operacionais e os riscos de contramedidas holandesas agressivas , contrataram  navios e marinheiros holandeses , enviando-os à Índias Orientais . Não se deixando impressionar nem um pouco com esse gesto , entretanto , ''a VOC retrucou capturando os navios, aprisionando os holandeses e mandando os genoveses de volta para casa '' (Israel citando E.O.G. Haitsma Muiler ) . A internacionalização dos custos de proteção permitiu aos holandeses levar os processos sistêmicos  de acumulação de capital  muito mais longe do que fizera ou poderia ter feito  a estratégia genovesa de externalizar os custos de proteção . Sem dúvida, tal como os genoveses haviam ''pegado o barco de outras pessoas ''os holandeses estavam basicamente seguindo a trilha de terceiros '' (Braudel ) . Em particular , se os holandeses , ao contrário dos venezianos dois séculos antes, puderam transformar sua supremacia no comércio regional , com tanta rapidez e sucesso , numa supremacia comercial e financeira mundial , foi porque outros já haviam estabelecido  uma rota marítima direta para as Índias Orientais. Mais ainda '' esses outros tinham-se tornado inimigos . Desde o começo , a expansão pelos oceanos ´´Indico e Atlântico foi concebida e executada pelos holandeses como uma extensão, no tempo e no espaço , de sua luta conta a Espanha Imperial , como é atestado pelo fato de que os alvarás da VOC e da Companhia holandesa das Índias Ocidentais ( a WIC) enfatizavam ,entre suas finalidades principais , o objetivo de atacar o poder, o prestígio e a receita da Espanha e de Portugal . Mas esse antagonismo ao poder ibérico foi justamente o que diferenciou a expansão comercial holandesa da genovesa, permitindo à primeira levar os processos sistêmicos de acumulação muito além do que pudera fazer a segunda . É que, tomando em suas próprias mãos a organização política do espaço comercial , os holandeses puderam fazer a lógica da ação capitalista influir nos custos de proteção do mundo extra-europeu . Essa tendência evidenciou-se ao máximo no Oceano Índico, onde os portugueses tinham levado a melhor antes e depois de sua incorporação pelo Império Espanhol na década de 1560. Ali como em outras áreas, a iniciativa portuguesa trazia trazia as marcas de fervor e intolerância religiosos que , antes de mais nada , haviam impelido governantes ibéricos a empreender a expansão ultramarina : ''A tradição cruzadista dos portugueses e a ortodoxia e vigor inflexíveis de seus missionários prejudicaram seriamente seus esforços comerciais e diplomáticos. Numa área em que o islamismo era a religião dominante e se espalhava rapidamente entre os povos indianos e pagãos , os portugueses viram-se muitas vezes comprometidos de antemão com a hostilidade religiosa , em lugares onde mais conviria a seus interesses firmar tratados comerciais '' (Parry ) . As tendências territorialistas que caracterizavam os governantes ibéricos tinham levado os portugueses na Ásia meridional a querer abarcar o mundo com as pernas , aumentando os custos de proteção na região , em vez de diminuí-los, e se tornando vulneráveis à chegada de concorrentes europeus ''mais parcimoniosos '' . Tomando as fontes de abastecimento, destruindo navios árabes e aumentando os riscos de captura dos comerciantes locais em geral , os portugueses haviam aumentado enormemente os custos de proteção da rota do Mar Vermelho, assim conseguindo, por algumas décadas , criar profundas dificuldades para seus concorrentes árabes e venezianos : ''Mas ao mesmo tempo, o rei português tbm criaras para sua empresa de comércio de especiarias alguns custos elevados de proteção , os custos da intimidação de príncipes hindus , da tomada de postos de comércio e da manutenção do controle naval do oceano Índico ... na tentativa de fechar a rota do Mar Vermelho , ele assumira custos de proteção que eram elevados para sua empresa . Mais tarde , não pôde baixar substancialmente os preços das especiarias e continuar a cobrir seus custos '' (Lane ) . Como consequência, a rota do Mar Vermelho nunca foi completamente fechada . Na verdade , após uma reorganização para enfrentar a nova concorrência , os árabes  e venezianos conseguiram recuperar boa parte do terreno perdido para os portugueses. ''Talvez tenham sido ajudados nisso pela consolidação do Império Otomano , que não somente impôs tributos como tbm incentivou o comércio por seus domínios, oferecendo segurança em seus portos e rotas terrestres construindo e mantendo estradas e albergues , dando ocnsiderável liberdade de comércio aos mercadores locais e cooperando com os comerciantes estrangeiros  ''  (Kassaba ) . Quer a consolidação do Império Otomano tenha ajudado ou não , os produtos orientais continuaram a ser transportados em grandes quantidades pelas antigas rotas '' e, embora os portugueses saqueassem intermitentemente esse comércio, não conseguiram impedi-lo '' ( Parry ) . Com isso, os portugeses foram obrigados a '' encontrar seu lugar, não de império conquistador, mas de umas das muitas potências marítimas concorrentes e belicosas nas águas rasas do arquipélago da Indonésia '' (Parry ) . Sua navegação pelo Oceano Índico manteve-se como ''um fim a mais na trama existente do comércio interportuário malaio-indonésio '' (Boxer). Seu regime ''alicerçado na guerra , na coerção e na violência, não significou, em momento algum ,  um ''estágio de desenvolvimento superior '', em termos econômicos, para o comércio asiático '' (Van Leur ) . dentro da constelação de poderes do Oceano Índico, a posição dos portugueses como ''primus inter pares '', bem como a lucratividade de seu comércio, dependiam exclusivamente da superioridade de seu poderia naval . ''O aparecimento de um inimigo que pudesse derrotá-los no mar, em águas orientais , prejudicava gravemente  seu poder e seu comércio . O s turcos haviam tentado e fracassado várias vezes. Na fim, foi um inimigo europeu que logrou êxito '' (Parry ) . A capacidade da VOC de derrotar os portugueses no mar foi uma condição necessária, mas claramente não suficiente , da lucrativa incorporação das Índias Orientais, ou de parte delas , no Império comercial holandês . Os holandeses cedo se aperceberam que a expansão lucrativa de seu comércio no Oceano Índico exigiria uma grande reestruturação das redes locais de comércio e poder : ''As especiarias eram baratas e abundantes nas ilhas . Havia muitas fontes alternativas de abastecimento e muitas rotas de transporte de cargas para a Índia , o Oriente Próximo e a Europa . Se a companhia holandesa se tornasse mais uma entre muitas transportadoras concorrentes , o resultado seria uma elevação dos preços na Indonésia e, provavelmente , uma saturação do mercado europeu . Para garantir uma oferta barata e regulada no Oriente e um preço sistematicamente elevado na Europa , era necessário um monopólio . Isso só poderia ser alcançado fazendo-se o que os portugueses não tinham conseguido fazer : controlar todas as principais fontes de abastecimento '' (Parry ) . A criação de condições de oferta e procura favoráveis à expansão lucrativa da VOC nas Índias Orientais implicou uma vasta gama de atos militares e conquistas territoriais . Algumas visaram a erradicar fontes alternativas de abastecimento, como no caso das ilhas Molucas, onde as cravoárias foram deliberadamente arrancadas, ou no de Cochin , na Índia , que foi ocupada para impedir a concorrência proveniente da produção de canela de qualidade inferior , porém mais barata . Algumas visaram a promover e impor a especialização entre diferentes ilhas , como no caso de amboyna , que se tornou a ilha do cravo, das Bandas , que se tornaram as ilhas do macis e da noz-moscada , e do Ceilão , que se transformou na ilha da canela. Algumas visaram a excluir os concorrentes das fontes de abastecimento que não pudessem ser diretamente controladas, como no caso de Banten , um sultanato de Java , cuja pimenta tornou-se monopólio holandês e cujos portos foram fechados a outros estrangeiros . Outras ainda visaram a eliminar os centros concorrentes existentes ou potenciais de troca de mercadorias, como no caso de Macassar , no arquipélago de Celebes , tomadas à força para impedir que se transformasse numa base de livre comércio de especiarias '' (Parry ) . Nesses e noutros casos, o histórico da brutalidade holandesa na escravização dos povos nativos (literal e metaforicamente ) , ou em priva-los de seus meios de sobrevivência, bem como no uso da violência para dobrar-lhes a resistência à política da Companhia , equiparou-se ou até superou os padrões já aterradores estabelecidos pelos cruzadistas ibéricos em todo o mundo extra-europeu . Mas essa brutalidade foi totalmente inerente à uma lógica empresarial de ação e, em vez de solapar , respaldou a lucratividade : ''O historiador , embora horrorizado com esse histórico de brutalidade , não pode deixar de ponderar sobre a rede premeditada , extraordinária e às vezes grotesca de compras , embarques, vendas e trocas entrelaçadas. As especiarias finas não tinham um mercado imediato apenas na Holanda : o Índia as consumia duas vezes mais do que a Europa e, no extremo Oriente , elas eram uma moeda de troca muito procurada , a chave que abria muitos mercados , tal como o faziam os cereais e os mastros de navios do báltico na europa '' (Braudel ) .  Assim , a VOC combinou o que os portugueses já haviam levado para o oceano Índico (um poderia naval superior e um vínculo organizacional direto com os mercados europeus de produtos orientais ) com o que faltara à iniciativa ibérica, ou seja : a obsessão com o lucro e com a ''economia '', em vez da CRUZADA ; a evitação sistemática de envolvimentos militares e aquisições territoriais que não tivessem uma justificativa direta ou indireta na ''maximização '' do lucro ; e um envolvimento igualmente sistemático em qualquer atividade ( diplomática, militar, administrativa ,etc ) que parecesse prestar-se melhor à tomada e à manutenção do controle dos suprimentos mais estratégicos do comércio do Oceano Ìndico . Nessa comparação com a iniciativa portuguesa, a VOC menos fez finalizar do que ''economizar '' os custos de proteção . Ela reduziu os envolvimentos que não geravam retornos financeiros satisfatórios e complementou o poderio visível e dispendioso de seu aparelho de utilização e controle da violência com um poder invisível , e uma vez adquirido, autofinanciador, gerado pelo controle exclusivo  da oferta de especiarias finas provenientes da área do oceano Índico. Desse modo, a VOC ''reproduziu '' no Oceano Índico o capitalismo (monopolista ) de Estado que a elite mercantil holandesa já havia praticado com sucesso na Europa . no oceano Índico, bem como na Europa , a arma decisiva manejada  pelos holandeses na luta pela riqueza e o poder foi o controle exclusivo de uma oferta regionalmente estratégica ---- os cereais e as provisões navios , no comércio do Báltico , e as especiarias finas , no comércio do Oceano ìndico. E, em ambos os casos, a conquista e preservação desse controle exclusivo basearam-se na disposição de um aparelho autônomo e competitivo de gestão de guerra e do Estado . Foi essa duplicação do capitalismo 9monopolista ) de Estado que permitiu à elite mercantil holandesa, posicionada no alto comando do Estado holandês e e da ''paraestatal '' VOC , levar os processos sistêmicos de acumulação de capital mais longe do que o capitalismo (financeiro) cosmopolita da elite mercantil genovesa havia conseguido fazer. Como os genoveses, e ao contrário dos venezianos , os holandeses romperam a camisa de força do comércio regional para ''maximizar '' os lucros  em escala mundial . Mas, como os venezianos e ao contrário dos genoveses, nunca externalizaram os custos de proteção e, portanto , puderam fazer uma lógica de ação econômica influir na expansão comercial no mundo extra-europeu . Mais uma vez, porém , o ponto forte de um regime de acumulação (no caso o holandês ) , em relação ao regime superado por ele (o dos genoveses ) , foi tbm sua principal deficiência em relação às forças a que ele deu origem ( o mercantilismo ). Quanto mais vasta a VOC tinha êxito  na busca do lucro , mais poderosa se tornava no Ravi Palat chamou de ''sistema interestatal '' do Oceano Índico . Esse poderia crescente favoreceu sua liberdade de ação, não apenas nas regulamentações das condições de oferta e procura de seu comércio , mas tbm na imposição de tributos , sob a forma indisfarçada de '' contingências '' (tributos em espécie ) ou sob a forma disfarçada de ''fornecimentos compulsórios '' (contratos comerciais excepcionalmente favoráveis  à VOC ) . Pouco a pouco, essas duas fontes de renda passaram a suprir o grosso de sua receita e foram cada vez mais confundidas entre si e com os proventos do comércio comum '' (Parry ). A proteção e a reprodução dessas receitas implicaram lutas contínuas contra povos subjugados à dominação da Companhia, contra os muitos príncipes navais e seus súditos que tinham sido empurrados para  pirataria pela política da Companhia (tal como os próprios holandeses tinham sido levados à pirataria pela política da Espanha Imperial ), e contra governos e empresas comerciais européias tentando reproduzir esses sucessos . De maneira lenta mas inevitável , a combinação dessas lutas levou a VOC a vastas anexações territoriais ,muito além do que quer que houvesse planejado ou considerado desejável originalmente'' (boxer ) . Esse fenômeno teve um efeito adverso no regime de acumulação holandês. Para começar, acrescentou um novo toque ao ''efeito de exibição '' que vinha atraindo um número crescente de Estados europeus para a via de desenvolvimento holandesa. Os holandeses , como os venezianos antes deles , haviam demonstrado que as técnicas capitalistas de poder podiam produzir resultados consideráveis no contexto europeu . O sucesso prodigioso da VOC na segunda metade do século XVII, construindo no Oceano Índico um império muito mais poderoso que o dos portugueses haviam conseguido fazer noas 150 anos anteriores, mostrou que , em circunstâncias favoráveis , as técnicas capitalistas de poder eram capazes de derrotar as técnicas territorialistas do próprio terreno da expansão territorialista . Se a concentração unilateral na busca do lucro havia permitido que os holandeses criassem um poderoso ''mini-império '' do nada ---- do alvará de um governo que ainda estava lutando por sua soberania de uma ''linha de crédito '' aberta no mercado financeiro de Amsterdã ----, que haveria de impedir as organizações territorialistas de construírem impérios ainda mais poderosos, passando tbm a ter uma mentalidade capitalista ???  Assim, os sucessos da VOC na construção de um império acrescentaram um novo estímulo à onda mercantilista que vinha minando por dentro e por fora a supremacia comercial holandesa . além disso, eles tiveram um segundo efeito , mais adverso , no regime de acumulação holandês . ''Como acontece em muitas empresas hoje em dia, o próprio sucesso e auto-suficiência da VOC aumentaram o poder da burocracia administrativa que era responsável por suas operações cotidianas . E esse poder aumentado passou a ser exercido , não tanto em prejuízo da diretoria da empresa  (os Heeren XVII) ,mas dos acionistas . Como consequência, uma percentagem crescente dos excedentes reais e potenciais da VOC passou a ser  desviada do pagamento de dividendos para a expansão burocrática da empresa e , acima de tudo , para remunerações lícitas e ilícitas do círculo dos Heeren XVII e da alta administração da Companhia   '' (Braudel ). O efeito principal dessa tendência  ---- do ponto de vista que nos interessa aqui ---- foi fortalecer a atração comparativa dos investimentos e da especulaçãocom papéis e ações estrangeiros , especialmente ingleses, na bolsa de valores de Amsterdam . ''Foi para a Inglaterra (...) que o capital excedente dos negociantes holandeses começou então a fluir '' (Braudel ) . A bolsa de valores de Amsterdam, que no início do século XVII havia funcionado como uma poderosa ''bomba de sucção '' , puxando o capital excedente da Europa inteira para as empresas holandesas, assim se transformou, cem anos depois , numa máquina igualmente poderosa, que bombeava o capital excedente holandês para a iniciativa inglesa . Portanto, o sucesso prodigioso da VOC no sul da Ásia teve um efeito adverso sobre o regime de acumulação holandês. Criou um novo atrativo para que as organizações territoriais imitassem e competissem com os holandeses e, em seguida, empurrou o capital excedente holandês para o financiamento de novos competidores que fossem mais bem-sucedidos.
K.M. 

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