quarta-feira, 29 de março de 2017

Um monopólio da liquidez mundial

Nova York, em si , continuava inteiramente subordinada a Londres , tanto em termos organizacionais quanto intelectuais. Sem dúvida , o grande aumento da participação norte-americana na liquidez mundial durante a guerra levara a um aumento igualmente significativo do poder e da influência da comunidade financeira nova-iorquina em geral e da Casa de Morgan em particular , dentro das redes de altas finanças baseadas em Londres. Mas essa redistribuição do poder e da influência não alterou o modo de funcionamento do sistema monetário mundial Wall Street e o Federal Reserve de Nova York simplesmente se aliaram à City de Londres e ao Banco da Inglaterra para manter e impor o padrão ouro internacional , cujo principal beneficiário era e continuou a ser a Grã-Bretanha. Como escreveu Jacques Rueff em 1932 , numa caracterização sectária mas exata dos arranjos monetários da década de 1920 : ''..o emprego do padrão ouro teve, para a Grã-Bretanha, a vantagem considerável de mascarar sua verdadeira situação por muitos anos . Durante todo o período do pós-guerra, a Grã-Bretanha pôde emprestar aos países da Europa Central fundos que continuavam retornando para ela , já que , no momento em que ingressavam na economia dos países tomadores , voltavam a ser depositados em Londres. Assim, como os soldados que marchassem pelo palco numa comédia musical, eles podiam reemergir indefinidamente e permitir que seus donos continuassem a fazer empréstimos no exterior, quando , na verdade , a entrada de divisas externas, que no passado havia possibilitado esses empréstimos, havia secado '' (Rueff ) . Mediante seu apoio ao padrão ouro internacional , portanto, a comunidade financeira de Nova York estimulou e sustentou as tentativas, afinal inúteis , de Londres de permamencer no centro das finanças mundiais . Nova York não foi a única a apoiar a tentativa de Londres de retornar ao mundo de 1913. durante toda a década de 1920, a maioria dos governos ocidentais partilhou a convicção de que somente o restabelecimento  do sistema monetário mundial pré-1914 , ''desta vez sobre bases sólidas '' , poderia restaurar a paz e a prosperidade. ''Qualquer que fosse sua orientação ideológica, os governos nacionais adaptaram suas políticas fiscais e monetárias para salvaguardar a moeda , enquanto inúmeras conferências internacionais , de Bruxelas a Spa e Genebras, de Londres a Locarno e Lausanne, foram realizadas para criar as condições políticas da restauração do padrão ouro (K. Polanny). Ironicamente, porém , esse esforço conjunto , em vez de ressuscitar o sistema monetário mundial pré- 1914, principiou sua crise terminal . Todos concordavam em que moedas estáveis dependiam, em última instância, da liberalização do comércio . No entanto , ''o pesadelo da auto-suficiência atormentava as medidas tomadas para proteger a moeda '' (K Polanny ) . No intuito de estabilizar suas moedas,'' os governos recorreram a quotas de importação , moratórias e acordos de suspensão , sistemas de liberação e tratados de comércio bilaterais , acordos de trocas , embargos sobre as exportações de capital , controle do comércio exterior e fundos de equalização de trocas , cuja combinação tendeu a restringir o comércio exterior e os pagamentos externos  '' (K Polanny) . ''Embora a intenção fosse liberalizar o comércio , o efeito foi estrangulá-lo '' (idem 0 . A busca de moedas estáveis, sob a pressão da ''fuga de capitais '', acabou por transformar a estagnação do comércio e produção mundiais da década de 1920 na depressão do início da de 1930 . Durante toda a década de 1920, a produtividade continuou a aumentar mais depressa nos Estados Unidos do que em qualquer dos países devedores, acentuando ainda mais a vantagem  competitiva dos negócios norte-americanos e as dificuldades dos países devedores de amortizar, e muito menos de quitar, suas dívidas . E, à medida que se ampliou a dependência do sistema mundial de pagamentos em relação ao dólar norte-americano, os Estados Unidos foram adquirindo ativos em moeda estrangeiro ''com uma rapidez que (..) não tem paralelo na experiência de nenhuma grande nação credora dos tempos modernos '' (Dobb ) . No fim da década de 1920, os empréstimos e investimentos diretos dos Estados Unidos no exterior haviam acumulado ativos líquidos em contas particulares no valor de mais de U$ 8 bilhões . No final porém os crescentes desequilíbrios estruturais dos pagamentos mundiais estavam fadados a impedir a continuidade desse processo, sobretudo em vista das tentativas generalizadas dos governos de restabelecer o padrão ouro de suas moedas . Os investimentos de capital que cruzavam as fronteiras estatais assumiram um caráter cada vez mais especulativo : ''Essas movimentações de ''capital especulativo '', como ele passou a ser chamado (...) corriam de um lado para outro entre os centro financeiros do mundo , à procura de segurança temporária ou lucros especulativos, e, em intervalos frequentes , exerciam uma pressão perigosa sobre as reservas de ouro e divisas estrangeiras deste ou daquele país '' (Arndt ) . Nessa situação, uma alta ou uma baixa especulativas repentinas nos Estados Unidos resultariam numa suspensão dos empréstimos externos e no desmoronamento de toda a complexa estrutura em que se baseava o restabelecimento do comércio mundial . E foi justamente isso que acabou acontecendo. Perto do fim de 1928 , a alta de Wall Street começou a desviar os recursos dos empréstimos externos para a especulação interna . à medida que os bancos norte-americanos foram cancelando seus empréstimos europeus, a exportação líquida de capitais dos Estados Unidos ----que subira de menos de U$ 200 milhões em 1926 para mais de U$ 1 bilhão em 1928 ---- voltou a despencar para U$200 milhões em 1929 . A interrupção dos empréstimos e investimentos estrangeiros dos Estados Unidos tornou-se permanente, com a quebra de Wall Street e a subsequente depressão da economia norte-americana . Confrontados com os cancelamentos súbitos ou as fugas dos capitais de curto prazo , um país após o outro viu-se obrigado a proteger sua moeda , fosse através da desvalorização, fosse pelo controle do câmbio . ''A suspensão da conversibilidade da libra britânica em ouro , em setembro de 1931, levou à destruição final da única rede de transações comerciais e financeiras em que se baseavam os Destinos da City londrina . O protecionismo exacerbou-se furiosamente ,  a busca de moedas estáveis foi abandonada e ''o capitalismo mundial retraiu-se nos iglus de suas economias nacionais e dos impérios que lhes estavam associados '' (Hobsbawm ). Foi essa ''revolução mundial '' que Karl Polanny fez remontar à ''ruptura do fio de ouro '' . Seus marcos principais foram o desaparecimento da ''haute finance'' da política mundial , o desmoronamento da Liga das Nações em favor de impérios autárquicos, a ascensão do nazismo na Alemanha, os planos quinquenais soviéticos e o lançamento do New Deal norte-americano . ''No fim da Primeira Grande guerra , preponderavam os ideais do século XIX , havendo sua influência dominado a década seguinte . Mas em 1940 não era tão novo assim . Mas em 1940 todos os vestígios do sistema internacional haviam desaparecido e, excetuando alguns enclaves , as nações estavam vivendo  num contexto internacional inteiramente novo '' (K. Polanny) . Mas , na verdade, o contexto internacional de 1940 não era tão novo assim, já que as grandes potências do sistema interestatal achavam-se em meio a mais um confronto militar , que ---- exceto por sua escala, ferocidade e destrutividade sem precedentes ----- reproduziu um padrão repetitivo da economia mundial capitalista.  Logo , no entanto, esse confronto traduziu-se no estabelecimento de uma nova ordem mundial, centrada nos Estados Unidos e organizada por esse país. Em alguns aspectos fundamentais, ela diferia da extinta ordem mundial britânica, e se transformou na base de uma nova forma de reprodução ampliada da economia mundial capitalista. No fim da Segunda Guerra Mundial, já estavam estabelecidos os principais contornos desse novo sistema monetário mundial ; em Hiroshima e Nagasaki, novos meios de violência haviam demonstrado quais seriam os alicerces militares da nova ordem ; em San Francisco, novas normas e regras para a legitimação da gestão do Estado e da guerra tinham sido explicitadas na Carta das Nações Unidas. A concepção inicial, no governo de Roosevelt, e sua mais modesta materialização posterior , sob as ordens de Truman, refletiram a concentração de poder mundial sem precedentes que havia ocorrido como resultado da Segunda Guerra . Em termos militares, enquanto a guerra ainda estava em seu auge '' as antigas grandes potências --- a França e a Itália ---- já haviam entrado em eclipse . A cartada alemã pelo domínio da Europa estava desmoronando , o mesmo acontecendo com o do Japão no Extremo Oriente e no Pacífico . A Grã-Bretanha, apesar de Churcill, estava entrando em declínio. ''O mundo bipolarizado , tantas vezes previsto no século XIX e no início do século XX, enfim havia chegado ; a ordem internacional, nas palavras de DePorte, mudou-se então '' de um sistema para o outro '' . Somente os Estados Unidos e a URSS tinham importância ''(...) e, entre os dois, a potência norte-americana era imensamente superior  '' (Kennedy ) . A centralização do poder financeiro foi ainda maior . O impacto da Segundo Guerra Mundial sobre a balança comercial norte-americana reproduziu, em escala ampliada , o impacto da Primeira . O pico é mais alto e mais longo . Isso reflete o maior grau em que os Estados Unidos atuaram como oficina do esforço de guerra dos Aliados e como celeiro e oficina da reconstrução européia do pós-guerra. Pela primeira vez na história norte-americana, o direito dos Estados Unidos sobre rendas geradas no exterior superaram por uma boa margem os direitos estrangeiros a receitas produzidas nos Estados Unidos  superaram por uma boa margem os direitos estrangeiros a receitas produzidas nos Estados Unidos, de modo que , depois da guerra , o saldo da conta corrente era muito mais alto que o saldo comercial . Em consequência desse novo e maior movimento ascendente de seus saldos comerciais e de conta corrente, os Estados Unidos passaram praticamente a desfrutar de um monopólio da liquidez mundial . Em 1947 , suas reservas de ouro equivaliam a 70% do total mundial . E a exacerbação da demanda de dólares, por parte dos governos e empresas estrangeiros , significou que o controle norte-americano da liquidez mundial tornou-se muito maior do que estava implícito nessa extraordinária concentração de ouro monetário . A concentração e a centralização tanto da capacidade produtiva quanto da demanda efetiva já era igualmente impressionantes . Em 1938, a renda nacional norte-americana já era aproximadamente idêntica à soma das rendas nacionais da Grã-Bretanha, França , Alemanha , Itália e Países Baixos, e quase três vezes superior à da URSS. Mas, em 1948, equivalia  a mais do dobro da renda do grupo supracitado de países da Europa Ocidental e a mais de seis vezes a da URSS (cálculo baseados em Woytinsky e Woytinsky ). Portanto , a derrocada final da economia mundial centrada no Reino Unido foi extremamente benéfica para os Estados Unidos. Menos de vinte anos depois do Crash de 1929 , o mundo estava em frangalhos , mas a riqueza e o poder nacionais dos Estados haviam galgado alturas sem precedentes e sem paralelo .

K.M.

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