A emancipação asiática da dominação ocidental não implicou uma rejeição das idéias do Ocidente sobre os direitos e as liberdades, ou de suas realizações científico-industriais. Ao contrário , grande parte da política de libertação nacional na Ásia girou em torno de uma demanda de direitos e liberdades que as potências ocidentais haviam proclamado no plano abstrato, mas recusado no concreto, ao lidar com povos e governos asiáticos. As nações antigas e novas da Ásia passaram a perceber apropriação de conquistas científico-industriais do Ocidente como indispensáveis a qualquer tentativa de alcançar os padrões ocidentais de riqueza e poder. É aqui que principalmente a China começa a se tornar a grande ameaça que é hoje à propriedade intelectual e às patentes técnico-científicas do Ocidente. Mas, ao defender as idéias ocidentais e procurar apropriar-se de tais conquistas , os movimentos emancipatórios contra a dominação ocidental invariavelmente se basearam em sua própria herança civilizacional nas esferas em que tinham pouco ou nada a aprender com o Ocidente . Em parte alguma a herança das civilizações ocidentais e não ocidentais combinou-se com mais eficiência do que no Leste da Ásia. As invasões militares do Ocidente no sistema regional, centrado na China , desencadearam um processo de modernização que impôs desafios cada vez mais sérios à supremacia ocidental : o desafio do poderio militar do Japão de 1905-1945, o desafio ideológico da China de 1949 a 1973 e o desafio econômico de toda a região do Leste da Ásia desde o fim da década de 1970 até hoje. Cada um desses desafios baseou-se no anterior e, tomados sequencialmente, os três refletem uma trajetória descendente da capacidade de o Ocidente exercer o domínio global com base no poderio militar superior . A fonte original e mais duradoura do poder ocidental na Ásia foi a capacidade de as nações ocidentais perturbarem a complexa organização que ligava as sociedades asiáticas entre si , dentro e através das divisões jurisdicionais e civilizacionais. Essa capacidade enraizou-se, por um lado, nos avanços ocidentais na tecnologia militar , e por outro, na vulnerabilidade das sociedades asiáticas à perturbação militar de seu intercâmbio comercial. Escrevendo em 1688, durante a guerra com o imperador Mughal Aurangzeb, Sir Josiah Child , diretor da Companhia das Índias Orientais e instigador da guerra , captou a essência dessa relação: ‘’Os súditos do império Mughal não tem como suportar uma guerra contra os ingleses , por doze meses seguidos, sem passar fome e morrer aos milhares , por falta de trabalho para comprar arroz ; e não é apenas pela falta de nosso comércio, mas porque, com nossa guerra, obstruímos seu comércio com todas as nações orientais , que é dez vezes maior que o nosso e de todas as nações européias juntas ‘’ (citado em R. Watson) . Dois aspectos desse diagnóstico precoce das relações entre Oriente e Ocidente se destacam: O primeiro concerne ao tamanho e a importância incomparavelmente maiores do comércio intra-asiático, cotejado com o comércio entre Oriente e Ocidente . Nessa época (1688) e durante pelo menos mais um século, a economia mundial européia, em rápida expansão , ainda estava por ‘’se equiparar ‘’ao tamanho e à densidade do que Fernand Braudel chamou de ‘’supereconomia mundial ‘’ do Extremo Oriente . Considerado como um todo, o Estremo Oriente compunha-se de três gigantescas economias mundiais : ‘’o Islã , que dava para o oceano Índico pelo Mar Vermelho e pelo Golfo Pérsico, e controlava a cadeia interminável de desertos que se estendem por toda a Ásia desde a Arábia até a China ; a Índia, cuja influência estendia-se por todo o oceano Índico ; e a China , que era a um tempo uma grande potência territorial, aprofundando-se pelo coração da Ásia, e uma inegável força marítima, controlando os mares e os países que confinavam com o Pacífico. Assim tinha sido durante muitas centenas de anos . Mas, entre os séculos XV e XVI, talvez seja lícito falar de uma ‘’única economia’’ mundial que abarca todas as três’’ (Braudel ) : e também : ‘’Essa formação intermitente também era frágil , por ser suficientemente estruturada para ser penetrada com relativa facilidade, mas não suficientemente estruturada para se defender ‘’ (Idem ). Em certo sentido , estava ‘’pedindo para ser invadida ‘’ , e invadida ela foi repetidamente, pelo norte e pelo oeste . Os europeus apenas ‘’seguiram os passos de outros invasores ‘’ (Braudel ) . Desde os tempos romanos, a Ásia fora um fornecedor de bens valiosos para as classes européias coletoras de tributos e, com isso , exercera uma poderosa drenagem dos metais preciosos europeus. Esse desequilíbrio estrutural do comércio europeu com o Oriente criou fortes incentivos para que os governos e empresas europeus buscassem meios e modos, fosse pelo comércio , fosse pela conquista , de recuperar o poder de compra que era implacavelmente drenado do Ocidente para o Oriente . Como observou Charles Davenant, um contemporâneo de Sir Josiah Child , ‘’Quem controlasse o comércio asiático ficaria em condições de ditar a lei do mundo comercial ‘’ . A centralidade do comércio asiático para a luta intra-européia pelo poder tinha sido a força propulsora por trás da descoberta ibérica das Américas e de uma rota marítima para as índias Orientais, através do Cabo da Boca Esperança. A prata americana, por sua vez , havia multiplicado os recursos acessíveis aos Estados europeus em sua luta mútua para se apropriar dos benefícios do comércio com o Oriente. A princípio, porém , a maior presença européia no comércio asiático teve pouco impacto na integridade da supereconomia mundial da Ásia . Grosso modo, a onda quinhentista de intromissão (Portugal e Espanha ) européia, liderada pelos ibéricos, afetou o funcionamento mas não as estruturas da supereconomia asiática. Portugal teve um efeito quase nulo no comércio asiático, nunca passando de um ‘’fio a mais ‘’ na urdidura do comércio malaio-indonésio . Mas os espanhóis chegaram a desenvolver rotas diretas de comércio entre a América e a China pelas ilhas Filipinas . Galeões carregados de prata zarpavam de Acapulco para Manila, onde a carga era transferida para juncos para ser entregue na China, por mercadores chineses. A onda liderada pelos holandeses no século XVII, ao contrário , iniciou a desarticulação dessas estruturas. A guerra, a coação e a violência foram tão cruciais para as incursões holandesas no comércio asiático quanto tinham sido para os portugueses antes. No entanto, no século que separou essas duas intrusões , a arte bélica da Europa havia passado por grandes avanços , nos quais os próprios holandeses tinham sido pioneiros. Ao conceberem uma tecnologia militar mais avançada influir nas estruturas do comércio asiático, os holandeses aderiram com mais rigor que os portugueses a uma lógica expansionista, que dava prioridade ao comércio e ao lucro . Como resultado, conseguiram não só conquistar o controle quase exclusivo do abastecimento de um produto ---- as especiarias finas ---- que desempenhava um papel crucial no comércio local e entre Oriente e Ocidente, como também obtiveram domínios territoriais estrategicamente significativos no arquipélago indonésio . Na Ásia, o impacto dessa dupla conquista foi muito menos importante do que na Europa. Na Ásia Meridional , a chegada dos holandeses no século XVII, bem como a de seus concorrente ingleses e franceses, simplesmente acrescentou novas comunidades comerciais à população mercantil já diversificada dos portos de comércio. Os mercadores europeus continuavam inteiramente dependentes das comunidades e redes locais para guiá-los ‘’pelo labirinto do comércio dos países’’ (Braudel ) . No Leste da Ásia, a empresa-Estado criada pela VCO no arquipélago indonésio pôde ser percebido como n]ao passando de um acréscimo à orla externa do sistema mundial centralizado na China. Por mais periféricas que parecessem do ponto de vista sinocêntrico, as conquistas da VOC introduziram uma cunha nas linhas de fratura entre as economias mundiais do Sul e do Leste da Ásia. É que as Índias Orientais eram uma grande ‘’encruzilhada de comércio’’ uma ‘’rede de tráfego marítimo ‘’ , nas palavras de Archibald Lewis ‘’comparável, em volume e variedade , à do Mediterrâneo ou à da costa nortista e atlântica da Europa ‘’ (citado por Braudel ). Essa movimentada encruzilhada comercial havia-se formado em decorrência de dois fenômenos : a expansão das economias mundiais do Sul e do Leste da Ásia nos ´seculos XIII e XV e a ascensão de Málaca e outros portos comerciais do século XV . Esses portos comerciais ---- como as cidades de intercâmbio da Europa medieval ---- beneficiaram-se ‘’de não estar estritamente integrados em nenhuma unidade política muito poderosa. A despeito de todos os reis e ‘sultões ‘ que os governavam (...) tratava-se de cidades praticamente autônomas : escancaradamente abertas o mundo externo, podiam orientar-se para se adequar às concorrentes do comércio ‘’ . Mas sua força mostrou-se também ser sua fraqueza, pois a abertura e a fragmentação política as tornavam vulneráveis à perturbação e à conquista de seu comércio por potências navais superiores . ‘’Ao chegarem pela primeira vez à região, os holandeses miraram diretamente nessa interseção vulnerável do comércio do Extremo Oriente ‘’ (Braudel ) .
K.M.
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