domingo, 26 de março de 2017

Desconstrução e incondicional responsabilidade.



''Retomada de uma experiência originária do pensamento''
Os caminhos da desconstrução, de Heidegger a Derrida
Paulo Cesar Duque-Estrada


A palavra desconstrução acabou se consagrando na utilização que dela foi feita para denominar a obra de Jacques Derrida. Mas é importante lembrar que, num certo sentido, tal palavra é anterior a Derrida; ela vem de Heidegger. No período inicial de sua trajetória filosófica, Heidegger propunha um projeto que chamou de “destruição da metafísica”, o qual, na verdade, nada tinha de destrutivo; pelo contrário, ele buscava libertar os conceitos que, ao longo da tradição, haviam enrijecido, pelo hábito de sua transmissão, em estruturas semânticas estáveis, fazendo-os retornar à experiência originária de pensamento da qual haviam brotado. Em sua própria língua, Heidegger pôde chamar de Destruktion esse procedimento que consistia, basicamente, em uma desmontagem das estruturas tão evidentes quanto ossificadas de sentido, permitindo ao conceito uma abertura ao âmbito em que ele fora originariamente pensado. Muito sinteticamente, Heidegger pretendia retomar a experiência do sentido do ser que caíra no esquecimento, no decorrer da tradição, com a progressiva adesão do pensamento ao sentido objetivo das coisas. Derrida, por sua vez, percebeu ser impossível evitar a conotação fortemente negativa caso vertesse o termo alemão para o francês destruction. O termo “desconstrução” (deconstruction) lhe pareceu mais apropriado para captar esta idéia – de uma desmontagem que desenclausura e libera, permitindo a re-tomada de uma experiência originária de pensamento ocultada pela familiaridade conquistada no manejo dos conceitos – inicialmente contida no projeto de Heidegger.

Mas isso não quer dizer que a desconstrução seja uma mera repetição ou uma simples versão francesa do projeto heideggeriano. Atravessada por muitas outras influências, notadamente o pensamento de Nietzsche, a psicanálise, uma certa literatura, a lingüística e o pensamento do outro em Levinas, a leitura derridiana de Heidegger assume um estilo inteiramente diverso e envereda por caminhos muito distintos daqueles percorridos pelo filósofo alemão. Apesar de uma certa identificação com a suspeita heideggeriana de que a evidência do sentido guarda em si o impensado de sua proveniência, essa última foi pensada por Derrida de uma forma muito diferente. É que, para Derrida, o conceito jamais poderá ser restituído ou mesmo orientar-se em direção à sua origem, ao seu momento inaugural, ao seu solo, ambiência ou contexto próprio. Poder contar, de uma forma ou de outra, com a presença dessas coisas – solo, ambiente, contexto originário etc. – e, assim, com a possibilidade de uma devida retomada das mesmas, vale dizer, e para dizê-lo numa só palavra, poder contar com a presença e a retomada da origem é manter-se no pressuposto por excelência de toda metafísica. E Heidegger, nesse sentido, estaria ainda preso a um tal pressuposto, apesar de sua potente crítica da metafísica.

Em contraste, ao invés de encarnar a idéia de uma desmontagem com o intuito de liberar aquilo que, tendo sua origem ocultada, esquecida, acha-se impedido de ir ao encontro do que lhe é próprio, o alvo da desconstrução derridiana é a idéia mesma ou a ilusão de uma presença, de “algo” – a idéia, o espírito, a razão, a história etc. – que pode e deve ser retomado para a realização do que é ou deveria ser. Daí o uso derridiano da expressão “desconstrução da metafísica da presença”, que não constitui malquerença alguma em relação às coisas, muito menos algum tipo de pregação em favor do nada. Ao contrário, é por uma responsabilidade incondicional em relação às coisas que a desconstrução não abre mão de pensar o que quer que seja sem denegar o que ela acolhe e toma como um princípio; ou seja, toda “origem” nunca é “original”, pois ela é desde sempre suplementada por uma palavra, um termo, um conceito, enfim, por todo um discurso. Exemplo: o que é a “consciência” independentemente dos inúmeros discursos – psicanalíticos, filosóficos, científicos, jurídico-políticos – sobre a consciência? Ou seja, a consciência, longe de ser uma coisa primeira, separada, anterior a toda e qualquer palavra que a ela venha se adicionar posteriormente, como um suplemento, encontra-se, ao contrário, já e desde sempre intencionada em algum tipo de discurso que a ela se refere. Desse modo, a desconstrução parte sempre do princípio de que essa estrutura do suplemento é que é original ou originária, e não a presença nua e crua de alguma coisa, anterior à sua suplementação pelo conceito. Suplemento, aqui, não significa qualquer operação de referência que, num segundo momento, venha a se adicionar ou repetir, na sua ausência, o que já existia antes. Para darmos um outro exemplo, dessa vez apoiados em uma ilustração bem humorada do próprio Derrida1: ninguém nunca viu um “eu” andando por aí e, não obstante, sem que ninguém o tenha visto antes, o tempo todo há referências ao “eu” através das inúmeras formas de discurso. Isso quer dizer, em outras palavras, que a repetição, a estrutura referencial do suplemento, nunca foi um momento segundo, mas, desde sempre, primeiro.

É assim que a expressão derridiana “desconstrução da metafísica da presença” não se restringe às pretensões da filosofia, mas, antes, à pretensão da linguagem em geral. Pode-se dizer que a expressão diz respeito a uma relação, sempre tensa, com a pretensão da linguagem de presentificar o que nela se encontra referido, ou seja, de se supor ela mesma, a linguagem, isenta de qualquer seleção e interpretação. Em uma linha de pensamento aberta por Nietzsche, Derrida busca desconstruir a idéia de que a linguagem, mesmo a linguagem científica, pretensamente neutra e objetiva, mantém uma relação direta, imediata, com aquilo a que se refere. Mas pode parecer estranho, de todo modo, que, em nome de uma incondicional responsabilidade em relação às coisas, proponha-se uma resistência quanto às pretensões presentificantes das coisas por parte da linguagem. O que ocorre é que com essa mudança de enfoque, da presença para o suplemento, da coisa referida para a referência à coisa, Derrida propõe não uma indiferença, um “dar as costas”, mas uma outra maneira de pensar as coisas e, em primeiro lugar, a própria linguagem.

É o que se vê, por exemplo, em Gramatologia2, onde, talvez, possa-se encontrar o melhor exemplo de desconstrução do conceito de linguagem. É importante ressaltar, contudo, que não é o livro Gramatologia que desconstrói, pela aplicação de um suposto método desconstrutivo, o conceito de linguagem. O livro apenas responde à desconstrução da linguagem que já vem ocorrendo no mundo e tenta pensar o que resulta de novo para a experiência contemporânea em uma tal ocorrência. Esta, aliás, é uma marca reivindicada em todo texto de Derrida: a desconstrução é sempre uma ocorrência no mundo, e o chamado pensamento desconstrutivo será sempre uma tentativa de resposta do pensamento a tal ocorrência. No caso do conceito de linguagem, a sua desconstrução se faz coetânea à crescente proliferação iniciada já nas primeiras décadas do século 20 – a cibernética, informática, teorias lingüísticas, filosofias da linguagem, entre tantas outras formas do uso do termo “linguagem” que vão configurando as experiências determinantes da nossa contemporaneidade – Derrida percebe, nessa proliferação, que o conceito de linguagem escrita, até então considerada um mero apêndice, algo exterior à unidade essencial entre a voz, a “palavra falada” e o sentido, começa a se emancipar da sua posição secundária para se projetar para além do próprio conceito de linguagem. A escritura, diz Derrida na abertura de Gramatologia, começa a ultrapassar a extensão da linguagem. Ela não é mais, de acordo com a estrutura do conceito de linguagem, um signo secundário, decaído, mero “significante do significante”, posto que apenas o signo gráfico de um signo oral, este, sim, mais importante, já que diretamente relacionado ao sentido. O que Derrida percebe, com a crescente proliferação de linguagens, é que o lugar secundário da escritura se projeta como o próprio movimento ou jogo da linguagem: toda palavra é sempre “secundária” já que ela nunca pode alcançar, possuir, se unir à coisa à qual ela se refere, pois não há nada “em si” que ela pudesse alcançar; as coisas do mundo, e até o próprio mundo, não existem fora ou anteriormente ao movimento da escritura.

Assim, sob a rubrica da escritura, não só a linguagem passa a ser pensada de um outro modo, mas também as coisas em geral. E aqui talvez possamos compreender melhor a relação entre a escritura e as coisas e em que medida se reivindica, com a escritura e para além do conceito de linguagem, uma incondicional responsabilidade em relação às coisas. É que se a estrutura do suplemento é que é originária, e o suplemento não se enraíza em solo ou fundamento algum; em outras palavras, como a estrutura referencial dos discursos não parte de algum ponto central ou inaugural – sempre houve estrutura referencial, até mesmo em referência a um hipotético ponto central ou inaugural –, isso quer dizer que nada, no universo de todas as coisas que nos chegam graças à linguagem, incluindo nós mesmos diante de nós mesmos, nada se mostra “enquanto tal”, malgrado a pretensão da linguagem; isto é, em sua presença nua e crua, anterior, autônoma, auto-idêntica, enfim, em sua verdade, naquilo que ela é etc. Poderíamos dizer que o “enquanto tal” de algo outra coisa não é senão o correlato de uma das intermináveis denegações da linguagem. A chamada responsabilidade incondicional, que é uma exigência infinita de se responder com o pensamento ao que a língua promete, mas não pode cumprir, ou seja, o revelar das coisas, essa responsabilidade se insere nessa dissimetria da linguagem – agora entendida como escritura – no âmbito de sua máxima tensão. É que sempre que alguma coisa (um objeto, uma cultura, uma obra, uma pessoa etc.), em sua singularidade, deixa-se representar no enquanto tal de sua verdade, o infinitamente irredutível de sua própria singularidade sofre, nesse momento, uma redução à lógica do discurso que, ao mesmo tempo, revela-lhe e toma posse de sua verdade enquanto tal, universalizando, tornando transmissível, familiar, previsível, o que é único. Não se trata de um acidente de percurso, algo que se possa evitar ou consertar, mas da dissimetria estrutural da própria linguagem à qual ela se volta e se revolta, nisso, constituindo a sua irredutível afirmatividade e incondicional abertura ao devir. Lugar originário da promessa, não da promessa não cumprida, mas da promessa anterior à toda promessa, abertura a toda promessa, apesar de tudo, a escritura tudo atravessa e a ela se entrega, talvez, por amor e tremor, o pensador desconstrutor.

1 Cf. documentário de Safaa Fathy D’ailleurs, Derrida. 2000.
2 Trad. Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro. Ed. Perspectiva. São Paulo. 1999.

Paulo Cesar Duque-Estrada
é professor do Departamento de Filosofia da PUC-Rio e diretor do Núcleo de Estudos em Ética e Desconstrução (NEED) – www.need.pro.br

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