Na combinação espacial e na alternância temporal de políticas que visavam
a enfraquecer ou fortalecer as estruturas dos impérios asiáticos, conforme
conviesse à busca de poder mundial da Grã-Bretanha, a ‘’ocidentalização’’ como
tal nunca foi um objetivo em si . Basta dizer que a mudança da política
britânica, passando da hostilidade à amizade em relação aos governos centrais
do Império Otomano, no fim da década de 1830, e do Império Chinês , no início
da década de 1860 , ocorreu enquanto esses governos eram seriamente desafiados
por rebeliões ---- a revolta do governador egípcio Muhammad Ali e a Rebelião
dos Taiping na China, respectivamente ----- que se voltavam mais para esta ou
aquela forma de ‘’ocidentalização ‘’ do que os governos centrais com que os
britânicos ladeavam . Muhammad Al dera ao governo Otomano uma ajuda militar
decisiva na repressão ao movimento de ressurgimento islâmico dos Wahhabis na
Arábia. Posteriormente , quando ele se voltou contra os otomanos, sua revolta
fez parte de uma tentativa de transformar o Egito em um Estado nacional moderno
, à imagem dos europeus . Na busca pela hegemonia regional , a Grã-Bretanha não
viu nenhum atrativo nesse esforço e não relutou em alinhar-se com os otomanos
para sufocar a revolta. Já a Rebelião dos Taipings , em 1850-1864 , foi um
movimento muito mais complexo, poderoso e radical do que as revoltas que as
revoltas que haviam abalado o Império Otomano vinte anos antes. Sobrevindo no
fim de uma longa série de rebeliões religiosas-políticas que haviam maculado o
governo dos Qing desde o auge do poder e do prestígio da dinastia, no Império
de Qianlong (1736-1795) , o movimento dos Taiping apresentou facetas que o
tornaram mais semelhante à uma revolução social do que a uma ‘’rebelião’’. ‘’Se
ele houvesse se voltado apenas contra os manchus, como os movimentos anteriores
de restauração dos Ming ou o partido revolucionário de Sun- Yatsen , a pequena
nobreza poderia ter-se aliado ao movimento , que talvez houvesse logrado êxito
. Nesse caso, no entanto , teria sido apenas mais uma das muitas mudanças dinásticas
da China . Mas os Taiping estavam decididos a erradicar os componentes mais
básicos da sociedade chinesa tradicional : os funcionários da pequena nobreza,
os eruditos, os senhores de terras ---- e o espírito confuciano em que se
apoiava sua autoridade ‘’ (Schurmann Schell ) . Fundado pelo líder carismático
Hong Xiuquan e militarmente organizado por homens oriundos do mesmo grupo
étnico de Hong (os Hakkas , ou ‘’colonos convidados ‘’ ---- pessoas que haviam
migrado do Norte para o Sul da China séculos antes , mas que tinham mantido uma
identidade étnica separada) , esse movimento social-revolucionário originou-se
na região de Guangxi e em seu interior . Em 1851, a liderança deu ao movimento
o título dinástico de Taiping Tianguo (Reino Celeste da Grande Paz ) e lançou
uma grande expedição ao vale do Yangzi , no Norte . Em 1853 , os Taiping haviam
tomado Nanquim , transformando-a em sua capital ; haviam ocupado boa parte das
regiões Central e Sul da China, e chegaram a uma distância de menos de 50
quilômetros de Tianjin . Embora não conseguissem expulsar os Qing de Pequim,
símbolo da autoridade dinástica , resistiram às forças imperiais por mais dez
anos , até serem derrotados em 1864 . A organização política e militar dos Taiping
foi predominantemente extraída do antigo clássico dos Ritos de Zhu . O
comunismo primitivo invocado por esse e outros textos pré-confucianos também
impregnou as doutrinas socialistas utópicas dos Taiping . Mas o traço mais
característico da ideologia Taiping foi
a vinculação dessas doutrinas ao cristianismo , uma religião estrangeira que
tinha apenas uma história breve e duvidosa na China . Na imaginação messiânica
de Hong Xiuquan, as crenças cristãs , derivadas sobretudo do Antigo Testamento -----
a singularidade e onipotência de Deus criador. Sua paternidade espiritual de
todos os homens, a eficácia da oração , os Dez Mandamentos e assim por diante
----- combinaram-se com as crenças chineses tradicionais ou foram substituídas
por elas , como ao se usar uma glosa chinesa tradicional ---- ‘’O mundo inteiro
é uma família e todos os homens são irmãos ‘’ ---- em lugar do Sexto Mandamento
, em vez do texto mais severo : ‘’Não matarás nem ferirás os homens ‘’. O
resultado, nas palavras de John Fairbank, foi ‘’um singular amálgama
oriental-ocidental de idéias e práticas voltadas para a ação militante , como nunca
se voltou a ver até a China apropriar-se do marxismo . Esse amálgama primitivo
foi sem dúvida a melhor oportunidade que teve o cristianismo de se tornar parte
da antiga cultura chinesa . No entanto, as nações ocidentais nada fizeram para
aproveitar a oportunidade. Só pensaram em arrancar mais concessões do regime
Qing, tirando proveito dos apuros em que o regime fora colocado pela rebelião
dos Taiping e por outras revoltas ---- a rebelião de Nian, no Leste
(1853-1868), e a rebelião de Miao (1850-1872) e diversas rebeliões muçulmanas
(1855-1874) , no Oeste. Depois de conseguirem o que queriam na Segunda Guerra
do Ópio, elas apostaram sua sorte na Restauração dos Qing, por medo de perderem
o que haviam acabado de conquistar . A lógica por trás disso não foi apenas que
se os Qing derrotassem os Taiping, os estrangeiros conservariam suas novas
vantagens ; se os Taiping derrotassem os Qing o Ocidente teria que reiniciar o
cansativo processo das negociações --- e talvez travar novas guerras. E a
adesão a um credo de origem ocidental tornava os Taiping ainda menos receptivos
do que os Qing às intromissões ocidentais na soberania chinesa . É que seu
fervor puritano não se detinha na proibição do jogo, da idolatria, do adultério
, da prostituição e da antiga prática chinesa de enfaixar os pés das meninas...
Voltava-se também contra o Ópio, com muito mais firmeza do que jamais tinham
feito os Qing, e assim se chocava de frente com o interesse predominante da
Grã-Bretanha na região . E sua crença na igualdade entre os homens tampouco se
detinha em uma postura amistosa geral para com os ‘’irmãos estrangeiros’’ (wai
quo xiongdi ) , em nítido contraste com as crenças tradicionais na
superioridade dos chineses como povo escolhido. Traduzia-se também em uma
vigorosa oposição às restrições à soberania chinesa que as nações ocidentais
vinham impondo, à força , à debilitada dinastia dos Qing. Na China do início da
década de 1860, assim como no Império Otomano no fim da década de 1830, as
nações ocidentais que estavam sob a hegemonia britânica mostravam uma clara
preferência por lidar com as estruturas dos antigos regimes asiáticos em
desintegração e por alinhar-se com elas, em vez de alinhar-se e lidar com as
forças nascentes do nacionalismo e do ‘’ocidentalismo’’ . Ao contrário do que a
especulação histórica ocidental pensa, o objetivo das guerras britânicas oitocentistas
com os governo e povos do mundo não-ocidental , não foi a criação de condições de
intercâmbio comercial em termos de reciprocidade e respeito pela soberania dos
outros. Era muito mais o propósito de impor à China e ao mundo não-ocidental
uma condição de vassalagem política que contradizia profundamente as idéias
ocidentais de igualdade internacional e soberania nacional . Para perseguir
esse objetivo, as parcerias com os antigos regimes em declínio era muito mais
segura do que a parceria com as forças do nacionalismo e do ‘’ocidentalismo’’.
K.M.
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