terça-feira, 14 de março de 2017

O ''ocidentalismo '' contra o Ocidente

Na combinação espacial e na alternância temporal de políticas que visavam a enfraquecer ou fortalecer as estruturas dos impérios asiáticos, conforme conviesse à busca de poder mundial da Grã-Bretanha, a ‘’ocidentalização’’ como tal nunca foi um objetivo em si . Basta dizer que a mudança da política britânica, passando da hostilidade à amizade em relação aos governos centrais do Império Otomano, no fim da década de 1830, e do Império Chinês , no início da década de 1860 , ocorreu enquanto esses governos eram seriamente desafiados por rebeliões ---- a revolta do governador egípcio Muhammad Ali e a Rebelião dos Taiping na China, respectivamente ----- que se voltavam mais para esta ou aquela forma de ‘’ocidentalização ‘’ do que os governos centrais com que os britânicos ladeavam . Muhammad Al dera ao governo Otomano uma ajuda militar decisiva na repressão ao movimento de ressurgimento islâmico dos Wahhabis na Arábia. Posteriormente , quando ele se voltou contra os otomanos, sua revolta fez parte de uma tentativa de transformar o Egito em um Estado nacional moderno , à imagem dos europeus . Na busca pela hegemonia regional , a Grã-Bretanha não viu nenhum atrativo nesse esforço e não relutou em alinhar-se com os otomanos para sufocar a revolta. Já a Rebelião dos Taipings , em 1850-1864 , foi um movimento muito mais complexo, poderoso e radical do que as revoltas que as revoltas que haviam abalado o Império Otomano vinte anos antes. Sobrevindo no fim de uma longa série de rebeliões religiosas-políticas que haviam maculado o governo dos Qing desde o auge do poder e do prestígio da dinastia, no Império de Qianlong (1736-1795) , o movimento dos Taiping apresentou facetas que o tornaram mais semelhante à uma revolução social do que a uma ‘’rebelião’’. ‘’Se ele houvesse se voltado apenas contra os manchus, como os movimentos anteriores de restauração dos Ming ou o partido revolucionário de Sun- Yatsen , a pequena nobreza poderia ter-se aliado ao movimento , que talvez houvesse logrado êxito . Nesse caso, no entanto , teria sido apenas mais uma das muitas mudanças dinásticas da China . Mas os Taiping estavam decididos a erradicar os componentes mais básicos da sociedade chinesa tradicional : os funcionários da pequena nobreza, os eruditos, os senhores de terras ---- e o espírito confuciano em que se apoiava sua autoridade ‘’ (Schurmann Schell ) . Fundado pelo líder carismático Hong Xiuquan e militarmente organizado por homens oriundos do mesmo grupo étnico de Hong (os Hakkas , ou ‘’colonos convidados ‘’ ---- pessoas que haviam migrado do Norte para o Sul da China séculos antes , mas que tinham mantido uma identidade étnica separada) , esse movimento social-revolucionário originou-se na região de Guangxi e em seu interior . Em 1851, a liderança deu ao movimento o título dinástico de Taiping Tianguo (Reino Celeste da Grande Paz ) e lançou uma grande expedição ao vale do Yangzi , no Norte . Em 1853 , os Taiping haviam tomado Nanquim , transformando-a em sua capital ; haviam ocupado boa parte das regiões Central e Sul da China, e chegaram a uma distância de menos de 50 quilômetros de Tianjin . Embora não conseguissem expulsar os Qing de Pequim, símbolo da autoridade dinástica , resistiram às forças imperiais por mais dez anos , até serem derrotados em 1864 . A organização política e militar dos Taiping foi predominantemente extraída do antigo clássico dos Ritos de Zhu . O comunismo primitivo invocado por esse e outros textos pré-confucianos também impregnou as doutrinas socialistas utópicas dos Taiping . Mas o traço mais característico da ideologia Taiping  foi a vinculação dessas doutrinas ao cristianismo , uma religião estrangeira que tinha apenas uma história breve e duvidosa na China . Na imaginação messiânica de Hong Xiuquan, as crenças cristãs , derivadas sobretudo do Antigo Testamento ----- a singularidade e onipotência de Deus criador. Sua paternidade espiritual de todos os homens, a eficácia da oração , os Dez Mandamentos e assim por diante ----- combinaram-se com as crenças chineses tradicionais ou foram substituídas por elas , como ao se usar uma glosa chinesa tradicional ---- ‘’O mundo inteiro é uma família e todos os homens são irmãos ‘’ ---- em lugar do Sexto Mandamento , em vez do texto mais severo : ‘’Não matarás nem ferirás os homens ‘’. O resultado, nas palavras de John Fairbank, foi ‘’um singular amálgama oriental-ocidental de idéias e práticas voltadas para a ação militante , como nunca se voltou a ver até a China apropriar-se do marxismo . Esse amálgama primitivo foi sem dúvida a melhor oportunidade que teve o cristianismo de se tornar parte da antiga cultura chinesa . No entanto, as nações ocidentais nada fizeram para aproveitar a oportunidade. Só pensaram em arrancar mais concessões do regime Qing, tirando proveito dos apuros em que o regime fora colocado pela rebelião dos Taiping e por outras revoltas ---- a rebelião de Nian, no Leste (1853-1868), e a rebelião de Miao (1850-1872) e diversas rebeliões muçulmanas (1855-1874) , no Oeste. Depois de conseguirem o que queriam na Segunda Guerra do Ópio, elas apostaram sua sorte na Restauração dos Qing, por medo de perderem o que haviam acabado de conquistar . A lógica por trás disso não foi apenas que se os Qing derrotassem os Taiping, os estrangeiros conservariam suas novas vantagens ; se os Taiping derrotassem os Qing o Ocidente teria que reiniciar o cansativo processo das negociações --- e talvez travar novas guerras. E a adesão a um credo de origem ocidental tornava os Taiping ainda menos receptivos do que os Qing às intromissões ocidentais na soberania chinesa . É que seu fervor puritano não se detinha na proibição do jogo, da idolatria, do adultério , da prostituição e da antiga prática chinesa de enfaixar os pés das meninas... Voltava-se também contra o Ópio, com muito mais firmeza do que jamais tinham feito os Qing, e assim se chocava de frente com o interesse predominante da Grã-Bretanha na região . E sua crença na igualdade entre os homens tampouco se detinha em uma postura amistosa geral para com os ‘’irmãos estrangeiros’’ (wai quo xiongdi ) , em nítido contraste com as crenças tradicionais na superioridade dos chineses como povo escolhido. Traduzia-se também em uma vigorosa oposição às restrições à soberania chinesa que as nações ocidentais vinham impondo, à força , à debilitada dinastia dos Qing. Na China do início da década de 1860, assim como no Império Otomano no fim da década de 1830, as nações ocidentais que estavam sob a hegemonia britânica mostravam uma clara preferência por lidar com as estruturas dos antigos regimes asiáticos em desintegração e por alinhar-se com elas, em vez de alinhar-se e lidar com as forças nascentes do nacionalismo e do ‘’ocidentalismo’’ . Ao contrário do que a especulação histórica ocidental pensa, o objetivo das guerras britânicas oitocentistas com os governo e povos do mundo não-ocidental , não foi a criação de condições de intercâmbio comercial em termos de reciprocidade e respeito pela soberania dos outros. Era muito mais o propósito de impor à China e ao mundo não-ocidental uma condição de vassalagem política que contradizia profundamente as idéias ocidentais de igualdade internacional e soberania nacional . Para perseguir esse objetivo, as parcerias com os antigos regimes em declínio era muito mais segura do que a parceria com as forças do nacionalismo e do ‘’ocidentalismo’’.


K.M.   

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