O poderio holandês no século XVII cresceu intersticialmente, na interseção das economias mundiais do Sul e do Leste da Ásia. A onda de invasões européias do ´seculo XVIII, liderada pelos britânicos, deslocou o epicentro desse crescimento intersticial para o próprio cerne da economia mundial do Sul da Ásia. O crescimento continuou intersticial, pois, durante a maior parte do século XVIII, a Companhia das Índias Orientais teve pouco controle do gigantesco aparelho produtivo do subcontinente indiano e , pelo menos até Plassey , também exerceu pouco controle sobre a dinâmica do império Mughal em desintegração .No final do século , porém , a Companhia avançara muito em sua trajetória para se transformar na sucessora da corte Mughal, como centro redistributivo da economia mundial do Sul da Ásia, e para incorporar o comércio e a produção indianos nas estruturas da economia mundial européia. A história dessa dupla conquista da Índia, a um tempo política e econômica, deve agora ser reformulada no contexto mais amplo do choque de civilizações de que estamos tratando, que a conquista britânica da Índia acarretou . Esse choque de fato já se havia iniciado com as incurssões européias dos séculos anteriores, mas, até Plassey, por opção ou por necessidade, as incursões tinham sido primordialmente comerciais. Nas décadas que se seguiram à Plassey ,e particularmente no século XIX, a intromissão ganhou um alcance imperialista. Com isso, o choque de civilizações deslocou-se para o centro do palco nas relações entre Oriente e Ocidente. A dominação imperialista britânica do subcontinente indiano estabeleceu-se através de uma sucessão quase ininterrupta de guerras, que constituíram a principal manifestação da face coercitiva subjacente à hegemonia mundial da Grã-Bretanha. Em uma perspectiva estritamente eurocêntrica , a Grã-Bretanha hegemônica podia apresentar-se e ser percebida como tendo pouco entusiasmo pelas guerras. Enquanto trabalhava ativamente para estabelecer e preservar a ''paz de cem anos '' na Europa, os ingleses reduziram drasticamente suas forças militares já modestas. Segundo as estimativas históricas, o número de militares britânicos reduziu-se de 225 mil em 1816 para 140 mil em 1830 (muito pouco mesmo ) , quando se elevou para 248 mil, esse número ficou abaixo do existente no final das Guerras Napoleônicas . De acordo com outras estimativas, o número de homens em armas na Grã-Bretanha caiu de 192 mil em 1700 para 201 mil em 1850 e, como percentagem da população nacional, a tropa caiu de 5,4% em 1700 para 1,7% em 1850 (Charles Tilly ) . Esse corte das forças militares britânicas ocorreu no contexto do que Polanyi chamou de ''vitória do pacifismo pragmático '' na Europa . O avesso desse pacifismo pragmático europeu foi um apetite voraz de proezas e conquistas militares no mundo não ocidental .A Grã-Bretanha travou dez guerras só no subcontinete indiano. Elas incluíram duas guerras anglo-maratas (1803-1818 ) , que deram aos britânicos o controle de grande parte da região central da Índia e de partes de sua região noroeste ; uma guerra anglo-gurca (1814-1816), que estabeleceu a presença britânica no Nepal ; duas guerras anglo-birmanesas (1824-1852), que colocaram parte dos territórios da Birmânia sob controle britânico ; duas guerras anglo-sikhs, que estenderam o controle britânico até as fronteiras do Afeganistão ; e as infames guerras anglo-afegãs de 1839-1842 e 1878 . Se tomarmos em conjunto a Ásia e a África, chegou a haver 72 campanhas militares britânicas distintas entre 1837 e 1900. Segundo uma contagem diferente, entre 1803 e 1901 a Grã-Bretanha travou 50 grandes guerras coloniais. A Grã-Bretanha podia travar todas essas guerras e, mesmo assim , reduzir os gastos e o pessoal militares no âmbito interno, porque detinha o controle do maior exército de estilo europeu na Ásia, quase todo composto e inteiramente custeado pelos indianos. Em 1880, os contribuintes indianos sustentavam 130 mil soldados de sua própria nacionalidade e 66 mil ingleses. Como disse Lord Salisbury ''a Índia era um acampamento militar inglês nos mares orientais , de onde podíamos tirar qualquer número de soldados sem pagar por eles ''. Esse exército foi não apenas útil na conquista e controle da Índia e na defesa das fronteiras ocidentais contra avanços russos na Ásia Central, como foi empregado tbm para promover os interesses britânicos no mundo inteiro . Foi enviado à China em 1839, 1856 e 1859 ; à Pérsia em 1856 ; à Etiópia e a Cingapura em 1867 ; ao Egito 1882; à Birmânia em 1885 ; ao Niassa em 1893 ; a Mombaça e Uganda em 1896 ; ao Sudão em 1896 e 1897 ; À África do Sul durante a Guerra dos Bôeres ; e a vários lugares durante a Primeira Guerra Mundial. A conquista britânica do subcontinente indiano assinalou uma fase inteiramente nova na expansão do poderia ocidental na Ásia. Por um lado, concluiu a desarticulação que fora iniciada sob a hegemonia holandesa na supereconomia mundial asiática. Por outro, dotou a Grã-Bretanha dos recursos necessários para subjugar o último bastião do poder asiático : o Império Chinês e a economia mundial do Leste da Ásia que se centrava nele. Comparando a extensão diferenciada da dominação ocidental da Índia e da China, K. M. Panikkar assinalou que ''até em seu tempos de fraqueza, a CHina manteve a unidade política '', ao passo que '' na Índia de 1740, a autoridade imperial havia desmoronado por completo''. Em consequência disso, as companhias européias na Índia lidaram com uma estrutura política fragmentada, na qual uma delas (a Companhia das Índias Orientais ) acabou por se tornar dominante. Na China, em contraste , os europeus tiveram que lidar não apenas com uma estrutura política unificada, mas com uma estrutura política unificada cujo tamanho, riqueza e poder ainda não tinham rivais na Europa e continuavam a despertar a admiração da maioria dos visitantes europeus. Em parte reais e em parte fantasiadas, as realizações do Império Chinês na fase ascendente do ciclo dinástico dos Qing foram uma fonte de inspiração para grandes figuras do iluminismo. Na primeira metade do século XVIII, conforme observa Michael Adas ''a febre de coisas chinesas ia muito além dos quiosques e dos temas de peças teatrais. Alguns dos pensadores mais ilustres da época, inclusive Leibniz, Voltaire e Quesnay, voltavam-se para a China em busca de instrução, orientação no desenvolvimento institucional e provas que corroborassem sua defesa de causas tão variadas quanto o absolutismo benevolente, a meritocracia e uma economia nacional baseada na agricultura ''. O contraste mais marcante com as nações européias estava no tamanho da população chinesa. Na caracterização de François Quesnay , o Império Chinês era ''o que seria a Europa, caso esta se unisse sob um único soberano '' ---- uma caracterização ecoada no comentário de Adam Smith de que o ''mercado interno '' chinês era tão grande quanto o de ''todos os diferentes países da Europa juntos'' (Quesnay ) . Igualmente impressionante era o grau em qu esses domínios imensos e populosos pareciam ser ----- e definitivamente eram , se comparados à Europa ---- mais regidos pela persuasão moral do que pela força. Os visitantes e residentes europeus da China , em particular os missionários jesuítas , contrastavam a paz e tranquilidade do Império Qing com as contendas sociais e as guerras incessantes da Europa. A visão de que os governantes europeus tinham muito a aprender com os chineses, em matéria de lei , governo e moral , foi enormemente favorecida pelas descrições jesuíticas do Imperador Kangxi ''como um verdadeiro rei filósofo , dedicado ao bem-estar de seus súditos '' e profundamente interessado na arte e nas ciências, tanto chinesas quanto ocidentais ''. O chamado edito de tolerância do Rei Kang-xi, em 1692, chamou particularmente minha atenção, assim como, na época, chamou a atenção de Leibniz e Voltaire , que como praticamente todos os filósofos , detestavam o preconceito e as perseguições religiosas. Embora poucos se atrevessem a explicitar essa comparação, o contraste entre a política religiosa de Kang-xi e a revogação do Edito de Nantes por Luís XIV, em 1685 ---- com a consequente renovação das lutas religiosas na França e nas nações vizinhas -----, fortaleceu as teses dos que procuravam defender a sabedoria política e a probidade ética dos chineses. Até os proponentes mais convictos da China como modelo para a Europa limitavam seu entusiasmo, reconhecendo a estagnação do saber científico na China , em relação aos avanços europeus dos cem ou duzentos anos anteriores, Não obstante, nem Leibniz nem Voltaire , nem tampouco os autores jesuítas cujas narrativas lhes deram inspiração ,viam qualquer contradição entre a relativa estagnação nas ciências e a excelência na arte de governar e na filosofia moral . Afinal, os avanços europeus nas ciências haviam ocorrido no contexto de guerras generalizadas, colapsos de Estados e lutas sociais, e pouco haviam contribuído para produzir governos estáveis e uma vida tranquila. E ao contrário, era precisamente o governo estável que levava a China dos Qing a ficar atrás do Ocidente na arte da guerra e nas atividades científicas correlatas . O que maculou e acabou destruindo por completo a imagem a China como modelo não foi a primazia européia nas ciências abstratas, mas na guerra e no comércio . Fazia muito tempo que mercadores e aventureiros europeus vinham enfatizando a vulnerabilidade militar de um Império governado por uma classe culta e bem-nascida, ao mesmo tempo em que se queixavam amargamente dos obstáculos burocráticos e culturais enfrentados pelos que tentavam fazer comércio com a China. Ficcionalizadas por Daniel Defoe em ''Outras aventuras de Robinson Crusoé ''(1719) , e havendo recebido respeitabilidade de um relato não ficcional de um relato de viagem atribuído ao Capitão George Anson , A Voyage Around The World (1748) , essas acusações e queixas foram-se traduzindo, pouco a pouco , em uma visão fundamentalmente negativa da China, como um império burocraticamente opressivo e militarmente fraco . Essa visão negativa encontrou receptividade entre ilustres filósofos franceses, como Montesquieu, Diderot e Rousseau. O que é mais importante , contribuiu para fazer com que, na imaginação política do Ocidente, a CHina se transformasse, de modelo a ser imitado, na antítese do modelo britânico do Estado liberal e voltado para o comércio, que se vinha tornando hegemônico no pensamento ocidental .
K.M.
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