domingo, 19 de março de 2017

Criação da indústria de bens de capital.

Não é preciso fazer nenhum,a suposição especial sobre as diferenças psicológicas entre os engenheiros, industriais e banqueiros alemães, de um lado , e seus equivalentes britânicos, de outro, para compreender a divergência de suas racionalidades empresariais na segunda metade do ´seculo XIX . Esse divergência é perfeitamente compreensível em termos das diferentes posturas das suas comunidades empresariais e de seus respectivos governos nacionais diante do processo , em andamento , de formação do mercado mundia l . A racionalidade pecuniária do empresariado britânico era , primordialmente , um reflexo do controle exercido pelo Estado britânico sobre o processo de formação do mercado mundial . A racionalidade tecnológica do empresariado alemão , em contraste , era basicamente um reflexo dos graves desafios que esse mesmo processo trazia à integridade do recém-formado Estado alemão. Mais especificamente, essas duas racionalidades eram lados opostos do ''duplo movimento '' ---- no sentido da extensão e da restrição simultânea dos mecanismos auto-reguladores de mercado ---- que Polanyi destaca como u m'' aspecto abrangente '' da história do fim do século XIX e início do XX. Como Veblen , Polanyi sublinhou os riscos envolvidos nos empreendimentos produtivos realizados num sistema de instalações industriais complexas, especializadas e dispendiosas. O advento desse tipo de instalações modificou por completo as relações da indústria com o comércio . ''A produção industrial deixou de ser um acessório do comércio , organizado pelo comerciante como uma proposta de compra e venda ; passou a exigir um investimento a longo prazo, com os riscos correspondentes. A menos que a continuação da produtividade fosse razoavelmente assegurada, esse risco não seria suportável. E tal risco só seria suportado sob a condição de que todos os elementos necessários à indústria estivessem prontamente disponíveis nas quantidades necessárias , quando e onde se precisasse deles . Numa sociedade comercial , isso significava que todos esses elementos tinham que estar disponíveis para a compra. Dentre eles , três eram excepcionalmente importantes : o trabalho , a terra e o capital. Mas nenhum deles podia ser transformado em mercadoria, pois não eram produzidos para venda no mercado . A natureza fictícia . Submeter o destino dessas mercadorias fictícias --- dos seres humanos , de seu ambiente natural e dos meios de pagamento ---- às incertezas de um mercado auto-regulador era uma convite à calamidade : '' Nenhm sistema poderia suportar os efeitos de tal sistema de ficções simplistas , nem mesmo pelo mais curto espaço de tempo , se sua essência humana e natural, bem como suas organizações empresariais , não fossem protegidas da devastação causada por esse moinho satânico '' (K.Polanyi) . Assim, se iniciou o ''duplo movimento'' pelo qual a ampliação do mercado auto-regulador foi acompanhado por um movimento contrário em defesa da sociedade, que restringiu o funcionamento dos mecanismos de mercado no que diz respeito às mercadorias fictícias .  ''Por um lado, os mercados se difundiram por todo o globo , e a quantidade de mercadorias se elevou a a proporções inimagináveis ; por outro lado, uma rede de medidas políticas consolidou-se como instituições poderosas , destinadas a deter a ação do mercado em relação ao trabalho , à terra e ao capital . enquanto a organização dos mercados mundiais de moedas , sob a égide do padrão ouro, dava um impulso ímpar aos mecanismos de mercado , brotava um movimento profundamente arraigado de resistência aos efeitos perniciosos de uma economia controlada pelo mercado (k. Polanyi) . As origens desse ''duplo movimento'' de fala o autor serão encontradas no fortalecimento, na Grã-Bretanha , sob a influência de Davi Ricardo , da crença única na ''salvação do homem através do mercado auto-regulador '' . Considerada nos tempos pre-industriais como uma mera propensão a métodos não burocráticos de governo , essa crença assumiu um fervor evangélico depois que a revolução industrial deslanchou na Grã-Bretanha, onde ,na década de 1820 , desenvolveram-se seus três sustentáculo básicos : ''que o trabalho encontre seu preço no mercado ; que a produção de dinheiro esteja subordinada a um mecanismo automático ; que as mercadorias fiquem livres para fluir de um país para o outro, sem  entraves nem preferências ; em suma , em favor de um mercado de trabalho, do padrão ouro e do livre comércio '' (k Polanyi) . Nas décadas de 1830 e 1840 , a cruzada liberal a favor dos mercados livres resultou numa série de decretos legislativos que almejavam rechaçar as regulamentações restritivas. As principais medidas foram a Emenda à Lei dos Pobres   de 1834 , que subjugou a oferta de mão- de -obra interna aos mecanismos auto-reguladores do padrão-ouro, de maneira mais rigorosa do que ela já era; e o Anti-Corn Law Bill , de 1846 , que abriu o mercado britânico para a oferta de grãos do mundo inteiro . Essas três medidas criaram o núcleo de um sistema auto-regulador no mercado mundial, centrado na Grã-Bretanha. Formaram um todo coerente : ''A menos que o preço da mão-de-obra dependesse dos mais baratos grãos disponíveis, não haveria garantia de que os industriais desprotegidos não sucumbissem ao jugo do feitor voluntariamente aceito, o ouro. A expansão do sistema de mercado no século XIX foi sinônimo da disseminação simultânea do livre-comércio internacional, do mercado de trabalho competitivo e do padrão-ouro ; os três caminharam de mãos dadas '' (K. Polanyi ) . Na visão de Polanyi, embarcar nessa aventura da formação do mercado mundial exigia um grande ato de fé . As implicações do livre comércio internacional ''eram inteiramente extravagantes '' : ''O livre comércio internacional significou que a oferta de alimentos na Inglaterra dependeria de fontes ultramarinas ; que o país sacrificaria sua agricultura , se necessário , e ingressaria numa forma de vida, na qual seria parte integrante de uma futura união mundial vagamente concebida  ; que essa comunidade planetária teria que ser pacífica, ou caso contrário , tornada segura para a Grã-Bretanha pelo poder da marinha ; e que a nação inglesa enfrentaria a perspectiva de contínuas transformações industriais, confiando firmemente em sua criatividade superior e sua capacidade produtiva . entretanto, acreditava-se que , se pelo menos os grãos do mundo inteiro pudessem fluir livremente para a Grã-Bretanha, suas fábricas conseguiriam vender a preços mais baixos do que o mundo inteiro '' (K. Polanyi ). No tocante à Grã-Bretanha , não houve realmente nada de doutrinário , e menos ainda de extravagante, na adoção unilateral do livre comércio . Como declarou em 1846 o líder dos protecionistas ''tories'' , Benjamin Disraeli, até Cobden sabia que ''não havia possibilidade de se mudar as leis da Inglaterra a partir de uma doutrina abstrata ''. Para converter o Parlamento Britânico aos princípios do livre comércio era preciso algo mais substancial  do que uma verdade ''científica'' demonstrada . A principal razão de o comércio exterior e colonial britânico ter sido liberalizado foi que o protecionismo havia-se tornado um entrave à mobilização efetiva das recém-adquiridas aptidões industriais da Grã-Bretanha em benefício de suas classes dominantes : ''Os magnatas whigs (embora não tanto os fidalgos rurais tories , mais modestos ) sabiam perfeitamente que o poder do país , bem como o deles mesmos, baseava-se na disposição de ganhar dinheiro militarmente e comercialmente. sucede que, em 1750, ainda não se conseguia ganhar muito dinheiro na indústria . Quando isso fosse possível , ele não teriam grande dificuldade para se adaptar à situação '' (Eric Hobsbawm ) . Nem os magnatas whigs nem os fidalgos rurais tories mais modestos, jamais ganharam muito dinheiro na indústria. Mas, assim que surgiu a oportunidade  de mobilizar a indústria como um instrumento de engrandecimento nacional , eles a aproveitaram prontamente . Em sua maior parte , isso não implicou nenhum grande desvio de tradições já estabelecidas . Assim , o padrão-ouro da libra esterlina britânica no século XIX foi simplesmente uma continuação , por outros meios, de uma prática instituídas séculos antes , no reinado de Elisabeth I . Karl Polanyi foi um dos autores que melhor frisou  a estreita relação de inter-dependência que, na década de 1840 , passou a vincular o padrão metálico fixo da moeda britânica ao livre comércio unilateral e à auto-regulação do mercado de trabalho interno. Mas, durante dois século e meio , antes que esses três componentes do livre cambismo ricardiano passassem a constituir um todo coerente , o padrão metálico fixo havia formado um todo coerente com algo muito mais fundamental para seu funcionamento tranquilo do que os mercados livres : a bem sucedida expansão ultramarina do Estado e do capital britânicos. Quanto maior foi o sucesso dessa expansão , maior e mais regular foi a massa de capital excedente oriundo do exterior ---- sob a forma de juros , lucros, impostos e remessas ----, acumulada pelos súditos ou residentes britânicos e apta a ser mobilizada para apoiar a preservação do padrão  metálico fixo estável da libra britânica . E, inversamente , quanto mais longo o prazo e maior o sucesso com que esse padrão foi preservado , mais fácil se tornou para os agentes governamentais e empresariais britânicos obter , nos mercados financeiros mundiais , todo o crédito e liquidez de que precisavam para expandir suas redes ultramarinas de acumulação e poder . A expansão industrial da Grã-Bretanha durante as Guerras Napoleônicas não alterou o interesse fundamental das classes dominantes na continuidade desse círculo virtuoso entre a submissão voluntária da moeda nacional a um feitor metálico , por um lado , e a expansão ultramarina das redes de poder e acumulação britânicas, por outro . ao contrário , ela intensificou a ânsia e multiplicou os recursos para esse duplo objetivo . O aspecto central dessa expansão  industrial durante  a guerra foi a criação de uma indústria autônoma de bens de capital . Antes disso, a indústria de bens de capital na Grã-Bretanha , como em qualquer outro lugar , tinha pouca autonomia em relação aos ramos econômicos que utilizavam seus produtos .A maioria das empresas produzia ou sub-contratava a produção das instalações e equipamentos utilizados em suas atividades . No século XIX , a espinha dorsal da indústria britânica de bens de capital ---- a siderúrgica e ramos correlatos --- continuou a ser , para todos os fins práticos, nada além de um ramo subalterno do exército e da marinha britânicos . ''A guerra , com toda a certeza , foi a maior consumidora de ferro , e firmas como a Wilkinson , a Walker e a Usina Carron deveram as dimensões de seus empreendimentos, em parte , às encomendas governamentais de canhões , enquanto a indústria siderúrgica de Gales do Sul  dependia das batalhas . Henry Cort, que revolucionou a siderurgia, começou na década de 1760 como um agente naval que ansiava por aprimorar a qualidade do produto britânico, em conexão com o abastecimento de ferro da marinha . '' (E. Hobsbawm ) . Quando houve uma escalada de gastos do governo , às vésperas das Guerras Napoleônicas e no decorrer delas , o nível de produção e a velocidade das inovações em produtos e processos na indústria siderúrgica aumentaram muito , e a indústria de bens de capital tornou-se um departamento  muito mais autônomo da economia doméstica britânica do que jamais tinha sido, ou do que era até então em qualquer outro país. A proliferação de empresas especializadas na fabricação de meios de produção acelerou o ritmo das inovações entre os usuários desses meios e estimulou os produtores, comerciantes e financistas britânicos a descobrirem meios e modos de tirar proveito do número, gama e variedade maiores dos bens de capital existentes no mercado .  ''As demandas militares à economia britânica, portanto, contribuíram muito para moldar as fases subsequentes da revolução industrial, permitindo o aperfeiçoamento das máquinas a vapor e possibilitando inovações cruciais, como as linhas férreas e os navios de aço , numa época e em condições que simplesmente não teriam existido sem o impulso dado pela guerra às produção siderúrgica'' (J. McNeill) .

K.M.

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